Folha de S. Paulo


Crítica: Papéis em filmes de Sganzerla revelam o gênio de Jorge Loredo

Nenhum cineasta teve, mais que Rogério Sganzerla, a percepção do gênio popular brasileiro e, mais do que isso, a capacidade de integrá-lo a repertório mais vasto.

Se sua obra reflete plenamente a força dessa intuição apenas em seu momento inicial ("O Bandido da Luz Vermelha", "A Mulher de Todos"), isso se deve essencialmente ao tempo em que foi produzida, na política (a ditadura) e no cinema (a Embrafilme, a que se opunha).

Por isso, não é de estranhar que os momentos capazes de dar, hoje e no futuro, a real dimensão do que foram Jorge Loredo e seu Zé Bonitinho encontram-se em filmes como "Sem Essa, Aranha" (1970) e "O Abismo" (1978), especialmente o primeiro.

Loredo surgiu como comediante no fim da era da chanchada. Afirmou-se no começo dos anos 1960, momento em que a TV, especialmente a Excelsior, fazia um burlesco de alto nível. Mas nunca teve presença marcante no cinema até seu trabalho com Sganzerla.

Não deixa de ser relevante que "Sem Essa Aranha" amplie o campo da personagem original, como Rogério fizera em "Luz Vermelha", ao colar o tipo debochado de Pagano Sobrinho, à figura de um político corrupto: a chanchada, que o cinema novo tinha então na conta de gênero alienado, mostrava-se como expressão da chanchada nacional.

Assim, Aranha, o grande personagem de Loredo no cinema, aquele pelo qual no futuro se conhecerá seu humor (e parte do humor brasileiro do período), é construído por um deslocamento: ali, Sganzerla convocou Loredo, ator cômico de primeira linha, famoso como o Zé Bonitinho, para ser o Aranha.

Essa superposição de imagens é que produz o efeito buscado pelo filme. O Zé Bonitinho da TV era a caricatura de um sedutor, com seus óculos enormes, terno chamativo, o pente descomunal acompanhando o gesto de repentear os cabelos já assentados.

Ou seja, Zé Bonitinho era até então um inofensivo exibicionista, cuja figura se completava pelo bordão antológico: "Mulheres, cheguei!". Rogério fez dele um milionário canalha. Aranha é produto desse deslocamento, dessa soma de imagens, de uma estética que junta partes soltas do mundo (cultural, econômico etc.) e lhes dá forma.

É pena que o melhor de Loredo na TV (o da Excelsior, se bem me lembro) tenha desaparecido. É pena que os filmes que mais revelam seu gênio, os de Sganzerla, tenham sido produzidos em condição de quase clandestinidade e sequer tenham sido lançados em salas.

Certo, a obra de Sganzerla é, em certa medida, um vasto comentário sobre nossas precariedades, fracassos e impossibilidades. Nessa hora, tais virtudes importam pouco: o gênio de Loredo tende a desaparecer com ele.


Endereço da página:

Links no texto: