Folha de S. Paulo


Análise: Lavagem de dinheiro só acabará se for vista como afronta pessoal

É fácil a preservação clandestina de patrimônio ilícito adquirido.

Aquele que age para ocultar bens provenientes de infração legal lava dinheiro obtido ilegalmente com a sua colocação no sistema econômico mediante depósitos, compra de bens etc. (1ª fase da lavagem), dificulta o rastreamento quebrando a cadeia de evidências com a transmissão de ativos para contas diversas (2ª fase), os incorpora formalmente ao sistema mediante investimentos (3ª fase) e apaga os registros realizados (4ª fase).

A tolerância historicamente reiterada no mercado da arte, o uso de "offshores" e de doleiros para pagamentos no setor, quando não em espécie, não é incomum.

Os "dealers", negociadores das obras de arte, assemelham-se a informantes e devem ajudar na detecção de crimes. A inação insere-se no campo da omissão penalmente relevante e do dolo eventual, isto é, fechar-se-iam os olhos assumindo o risco de colaborar no delito.

Em razão dos contatos confidenciais que possui, sabe ou pode descobrir o que seria impossível de outra forma.

Sabendo dos limites para o transporte de dinheiro em espécie, a criminalidade adquire arte porque as obras são facilmente removíveis de suas molduras, enroladas e levadas ao exterior em tubos.

Por serem considerados "duty free", não há restrições fiscais para o seu transporte para ou do exterior. O documento fiscal que as acompanha é simplificado.

As casas de leilões internacionais, que detêm 90% do mercado, não restringem o pagamento em espécie, apesar de terem de atuar na mais alta boa-fé.

Como são autorregulamentadas, é fácil transferirem a responsabilidade para o consignante e não assumirem obrigação perante a comunidade internacional.

A confidencialidade permite a omissão de informação sobre anteriores proprietários, e não é incomum a venda de bens sem "provenance", a documentação que informe o local encontrado e ou o histórico de propriedade.

Júnior Pinheiro/Folhapress
Funcionários do museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, com tela apreendida na Operação Lava Jato
Funcionários do museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, com tela apreendida na Operação Lava Jato

COMBATE

Em 2009, o banqueiro Bernie Madoff foi sentenciado a mais de 150 anos de prisão por fraude. Procuradores tomaram os seus bens e os de sua mulher, incluindo obras de arte. O FBI estima perda de US$ 6 bilhões anuais no setor artístico com a ilicitude.

A lei obrigou que segmentos diversos comunicassem suspeita de crime para impedir a tentativa de dar aparência legal (lavar) às obras.

Consultorias e auditorias, factorings, lotéricas, assessoria a atletas e até os que comercializem arte devem, ou deveriam, avisar de suspeitas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Hoje, neste setor, apenas 68 operações foram realizadas, apesar dos casos já catalogados, como conluio para transporte ilegal de obras pré-colombianas roubadas; aquisição de obras de arte com recursos do tráfico; caminhão interceptado exportando arte; valores decorrentes de crime financeiro utilizados em benefício de controlador e de seus familiares, com a finalidade de desvio para a manutenção de seu fluxo financeiro e "investimentos" em arte.

Ao contrário do que parece, ao comunicar, segmentos são protegidos para não serem usados pelo crime organizado.

O confisco tornou-se uma estratégia prioritária na luta contra o crime organizado. A facilidade de práticas espúrias no setor de arte pode ser medida quando, hoje, organizações terroristas vendem arte sem qualquer intimidação.

O efeito mais danoso de lavar dinheiro não se dá apenas minando instituições estatais ou financeiras, mas também pela perda do acesso público da herança cultural. Daí porque se devem destinar obras confiscadas, seguindo as convenções internacionais, a museus ou entidades culturais.

O seu uso indevido não cessará até que cada um de nós veja isto como uma afronta pessoal.

FAUSTO DE SANCTIS é juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e escritor, autor de "Money Laudering Through Art" (lavagem de dinheiro pela arte, ed. Springer) e foi o magistrado responsável pela apreensão das obras de Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, e do traficante Juan Carlos Abadía, entre outros


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