Folha de S. Paulo


Análise: Pratchett era o deus de pequenas piadas e grandes absurdos

É preciso um tipo muito peculiar de imaginação para inventar um mundo cujo maior matemático é um camelo - sério, um camelo - chamado Seu Desgraçado.

Ou para teorizar que toda fita cassete largada por muito tempo dentro de um carro (a teoria, como se vê, é da época em que as tais fitas ainda existiam) acaba se metamorfoseando espontaneamente numa coletânea de grandes sucessos do Queen. Assim era a mente do britânico Terry Pratchett, cujas atividades foram encerradas pelo mal de Alzheimer nesta quinta (12), quando ele contava 66 anos de idade.

Um dos mais de 70 livros escritos por Sir Terry (sim, ele também era cavaleiro de Sua Majestade) leva o título de "Pequenos Deuses", e não seria grande exagero aplicar a expressão ao próprio romancista. Pratchett era o deus das pequenas piadas e dos grandes absurdos, capaz de transformar gêneros muitas vezes ossificados por clichês (como a fantasia medieval, o horror e as histórias policiais em monstrinhos hilariantes) que, ao mesmo tempo, podiam ser mortalmente sérios.

Embora sempre ambicionasse se tornar escritor, Pratchett atuou como jornalista dos 17 anos aos 39 anos, primeiro como repórter em jornais do interior da Inglaterra e depois como assessor de imprensa da CEGB, estatal britânica da área de eletricidade. Foi nesse emprego aparentemente enfadonho que Pratchett bolou sua principal criação, o universo ficcional do Discworld (Mundo do Disco).

SHOW DE PARÓDIA

À primeira vista, o Discworld é só uma paródia da cosmologia do tipo "Terra plana" dos povos antigos, com o potencial de absurdo elevado à enésima potência. O planeta em forma de pizza é sustentado por quatro elefantes, os quais, por sua vez, estão encarapitados no casco da colossal Grande A'Tuin, "a única tartaruga que aparece no Diagrama Hertzprung-Russell" (referência nerd: trata-se de um mapa real da luminosidade e temperatura das estrelas).

O Mundo do Disco é povoado por magos picaretas, bárbaros analfabetos e até versões amalucadas do antigo Egito (terra natal de Seu Desgraçado) e da Grécia clássica. As dezenas de livros da série satirizam os clichês da literatura fantástica de uma maneira que faz o leitor rolar de rir da capa à contracapa, ao mesmo tempo em que Pratchett aborda temas como a natureza do poder e da justiça.

Sua obra-prima, no entanto, talvez tenha sido "Belas Maldições", que escreveu em parceria com o também britânico Neil Gaiman - uma trama que se passa no nosso mundo, na qual um anjo e um demônio se unem para evitar o Apocalipse.

Calcula-se que seus livros tenham vendido 85 milhões de exemplares - ele conseguiu concluir mais um da série Discworld no ano passado. Pratchett deixa sua mulher, Lyn, e uma filha, Rhianna.


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