Folha de S. Paulo


Filme conta a história da marrabenta, mistura de dança com ritmos africanos

Antes de se tornar um dos maiores jogadores de futebol da história de Portugal, o moçambicano Eusébio passou a infância em um campinho de terra no bairro de Mafalala, na periferia de Maputo, a capital do país africano.

Foi ali, no final dos anos 1940 –quando Moçambique ainda estava sob controle português–, que os cabarés da região se tornaram o berço da explosão da marrabenta.

Mistura de dança e de ritmos africanos como magika, zukuta e xingombela, a música vibrante e sensual, considerada uma das grandes manifestações culturais de Moçambique, ecoava pelas noites do bairro.

Agora, a marrabenta é tema de documentário e chega também ao Rio, em março, durante o festival Back2Black.

Daigo Oliva/Folhapress
Dilon Dkindji (centro) se apresenta durante filmagem na região de Marracuene
Dilon Dkindji (centro) se apresenta durante filmagem na região de Marracuene

Além da exibição do filme, haverá apresentações de Mingas, Wazimbo e Moreira Chonguiça –símbolos da segunda geração do ritmo.

Produzido por Victor Lopes, 49, moçambicano radicado no Rio há 38 anos, o longa marca também o retorno afetivo do diretor a sua terra natal.

Para ele, contar a história da marrabenta é um acerto com suas memórias de infância, quando conheceu o gênero em casamentos e batismos.

"Era nas festas que ouvíamos a marrabenta, porque as bandas do estilo tocavam nos eventos dos brancos. Ali você via as tias portuguesas sacudindo a bunda e imitando as negras", relembra Lopes, filho de uma família de classe alta dona de empresas de pesca.

O alto custo para importar instrumentos musicais e a falta de lojas especializadas na Moçambique dos anos 1930 fizeram com que os pioneiros da marrabenta improvisassem violas feitas com grandes latas de azeite, pedaços de madeira e cordas de pesca.

A Xigogogwana, nome do instrumento, foi usado até a década de 1960, mas sua matéria-prima foi determinante para batizar o ritmo. O frágil encordoamento sempre estourava, o que fazia com que pedissem para "tocar a música que arrebenta a corda".

Porém a origem do nome é polêmica. Outra corrente defende que o termo partiu da dança que acompanha a música. Nas festas, as mulheres –mexendo os quadris quase como que se os descolassem do corpo– instigavam seus parceiros dizendo "arrebenta, arrebenta" e desciam até o chão.

Já Dilon Djindji, auto-intitulado "rei e criador da marrabenta", conta outra versão. Nos anos 1940, quando tocava em casamentos, o músico diz que era comum receber propostas de garotas que lhe ofereciam a virgindade.

"Virei sinônimo de 'me arrebenta'", conta Djindji, que rivalizava nos palcos com Fany Mpfumo, considerado por muitos o maior compositor moçambicano do gênero.

Djindi filmou sua apresentação para o documentário do lado de fora de sua casa em Marracuene, região rural de Maputo. Ali, o músico de 87 anos dança sem parar junto a crianças descalças.

A poeira só para de levantar quando a produção do documentário tem de cuidar da energia elétrica –prestes a acabar. Em alguns lares da capital moçambicana, o fornecimento de luz é feito via compra de créditos pelo celular, como num sistema pré-pago.

EUROPA

Tão vaidoso quanto contestado por se julgar o inventor do ritmo, Djindji ajudou a divulgar o ritmo fora de Moçambique com shows na Europa. Assim como ele, outra banda foi importante na tentativa de espalhar o gênero.

Nos anos 1980, a Orchestra Marrabenta Star, com Mingas e Wazimbo, excursionou por Ásia e Europa. Embora a marrabenta tenha ganho visibilidade, nunca teve as proporções do afrobeat do nigeriano Fela Kuti nem da febre popular do kuduro angolano, que tem até versões pop.

"Após o fim das turnês, não houve continuidade. Nós não tínhamos um promotor que defendesse a marrabenta pelo mundo", explica Elisa Domingas Jamisse, a Mingas.

Espécie de Gal Costa local, a cantora, que começou a carreira com covers de Roberta Flack e Diana Ross, lembra também a distância geográfica de Moçambique em relação à Europa, o que tornava as excursões caras. É a mesma opinião de Moreira Chonguiça e Wazimbo. Este último acrescenta que os governos moçambicanos nunca investiram na divulgação do ritmo e em sua preservação.

CABECINHA NO OMBRO

Cantada nas línguas changana ou ronga e associada a letras descompromissadas, como o hit "Elisa Gomara Saia", do grupo Djambo 70, que descrevia uma garota provocante de saia amassada, a marrabenta passou por discriminação logo após a independência de Moçambique. "O novo governo tinha medo de uma nostalgia, já que o ritmo era ligado aos brancos", conta Lopes.

Embora não tivesse sido proibido, o gênero só foi aceito novamente dez anos depois, quando o governo socialista enxergou na marrabenta um veículo de propaganda.

Ainda no início da produção do documentário, músicos e diretor se reuniram para uma entrevista coletiva realizada na Rádio Moçambique.

A rádio estatal, maior difusora do país, foi responsável pela popularização do ritmo no final da década de 1940. Hoje, transmitida em 18 línguas, ainda reserva 80% de sua programação para música moçambicana.

Após a entrevista, porém, quando os auto-falantes do prédio voltaram a ecoar a programação da rádio, o que se ouviu não foram as marrabentas. Foi o refrão de "Cabecinha no Ombro", clássico sertanejo do brasileiro Paulo Borges.

O jornalista DAIGO OLIVA viajou a convite da produtora CineGroup

FESTIVAL BACK2BLACK - MARRABENTA, O SOM DE MOÇAMBIQUE
QUANDO sex. (20), às 21h15; sáb (21), às 23h59
ONDE Cidade das Artes, av. das Américas, 5300, Rio, tel. (21) 3325-0102
QUANTO R$ 150 (inteira) e R$ 200 (combo para os dois dias)
CLASSIFICAÇÃO 16 anos

Veja o vídeo de "Elisa Gomara Saia", da Orquestra Djambo:

Barbapapa


Endereço da página:

Links no texto: