Folha de S. Paulo


Oscar mostra distância crescente entre Academia e espectadores

No fim, foram os espectadores que saíram esnobados.

Depois da conquista do prêmio de melhor filme por "Birdman", um filme cabeça visto por menos de cinco milhões de pessoas nas salas de cinema da América do Norte, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas acordou na manhã seguinte, segunda (23), para constatar índices mornos de audiência para o programa do Oscar e novos sinais de que os prêmios do cinema parecem estar irrecuperavelmente distanciados das preferências dos espectadores.

De acordo com dados de audiência da Nielsen, a transmissão da entrega do Oscar pela rede de TV ABC conquistou cerca de 36,6 milhões de telespectadores nos Estados Unidos, uma queda de 16% ante os cerca de 43 milhões de espectadores do ano passado.

Foi a audiência mais baixa desde 2009, quando o programa do Oscar, apresentado por Hugh Jackman foi assistido por 36,3 milhões de pessoas, e mostrou a vitória de "Quem Quer Ser Um Milionário".

Nos dia e semanas que precederam o programa do domingo (22), as manchetes falavam da escassez de diversidade racial entre os indicados. Isso deu a Neil Patrick Harris, o entusiástico, mas por fim pouco efetivo apresentador do programa, sua primeira piada da noite, quando ele abriu a cerimônia falando sobre a celebração dos "melhores e mais brancos –ops, mais brilhantes".

Mas o grande número de apresentadores e artistas negros –entre os quais John Legend e Common, que conquistaram o Oscar de melhor canção por "Glory", sua forte composição para o filme "Selma" - ajudou a aquietar essa controvérsia.

O artista mais celebrado da noite foi Alejandro Iñárritu, o diretor mexicano de "Birdman", que aceitou seu prêmio de melhor filme com um discurso apelando pelo respeito aos imigrantes. Ele também foi um dos roteiristas e produtores do filme, cujo título formal é "Birdman, ou a Inesperada Virtude da Ignorância".

O problema maior, à medida que os resultados surgiam, estava nas indicações - perceptíveis em meio a uma confusa distribuição de prêmios, em muitas direções divergentes - de que tanto a Academia quanto a câmera de eco do sistema de premiações de Hollywood praticamente romperam sua conexão com os filmes que muitos milhões de pessoas pagam ingressos para assistir.

"É triste, mas muita gente precisa enfim aceitar que o Oscar se tornou... bem, elitista, e está fora de sincronia com qualquer coisa que seja realmente popular", disse Philip Hallman, bibliotecário e estudioso do cinema na Universidade do Michigan. "Ninguém mais acredita que os filmes escolhidos serão aqueles que perdurarão".

BILHETERIAS

A audiência claramente votou em "Sniper Americano", de Clint Eastwood, uma história baseada em fatos reais sobre a guerra no Iraque que faturou cerca de US$ 320 milhões nas bilheterias dos Estados Unidos e atraiu quase 40 milhões de espectadores.

Os analistas de bilheterias preveem que o filme atingirá facilmente os US$ 340 milhões em arrecadação no mercado norte-americano antes de sair de cartaz, o que o tornará o mais assistido dos filmes lançados no ano passado, em termos de vendas de ingressos no mercado dos Estados Unidos.

Outra estatística reveladora: "Birdman" faturou cerca de US$ 11 milhões nas bilheterias entre seu anúncio como indicado ao Oscar e o domingo; "Sniper Americano" faturou US$ 317 milhões no mesmo período.
Mas "Sniper Americano", um dos oito indicados ao prêmio de melhor filme, e com um total de seis indicações, só levou para casa o Oscar de edição de som.

"O Jogo da Imitação", segundo colocado em termos de bilheteria entre os oito filmes indicados ao Oscar, com cerca de US$ 84 milhões arrecadados nos Estados Unidos e por volta de 10 milhões de espectadores, não se saiu melhor.

Apesar de meses de intensa campanha pela Weinstein Company, uma distribuidora experiente na briga pelo Oscar, o filme saiu derrotado em sete das oito categorias a que foi indicado, ficando apenas com o Oscar de melhor roteiro adaptado.

Na categoria de efeitos visuais, todos os cinco indicados, entre os quais "Interestelar", o vencedor, eram o tipo de filme de produção milionária que mantém Hollywood em atividade e garante seu prestígio em todo o planeta. Nenhum deles estava entre os trabalhos de baixo orçamento e pequeno público que disputaram o prêmio de melhor filme e há meses dominam as conversas sobre a temporada de prêmios.

Até mesmo o segmento de homenagem aos mortos do cinema no ano precedente esnobou os espectadores. Joan Rivers, altamente popular, presença constante no tapete vermelho e atriz ocasional, foi uma ausência perceptível, em meio a muitos profissionais do cinema menos conhecidos que foram incluídos.

Não deveria ser assim: em 2009, os dirigentes da Academia ampliaram o número de indicados para melhor filme, de cinco a um máximo de 10, em um esforço para abarcar os grandes filmes de alcance mundial, como "Batman - O Cavaleiro das Trevas" e "A Origem", que são o pináculo de uma arte populista.

O plano era restaurar a relevância do Oscar, e reaproximá-lo de "uma história na qual a maior parte dos filmes ganhadores eram também populares com as audiências", disse Hallman segunda-feira.

Com a ocasional exceção de um "Avatar" ou "Gravidade" entre os indicados, porém, o aumento no número de indicados resultou apenas em presença maior de filmes pequenos.

A tendência ficou bastante perceptível no domingo, quando um dos grandes ganhadores foi "Whiplash - Em Busca da Perfeição", que conquistou três Oscar mas foi assistido por apenas 1,4 milhão de espectadores pagantes desde seu lançamento nos Estados Unidos, mais de quatro meses atrás.

Esse lento abandono das audiências, dizem os historiadores do cinema, quase certamente tem suas origens no processo de admissão de membros da Academia, que privilegia a admissão de pessoas indicadas a prêmios a cada ano. Assim, profissionais indicados por terem participado de filmes pequenos indicam outros filmes pequenos.

A recente decisão de expandir a seção de documentários provavelmente elevou ainda mais o número de votantes com preferência pelo cinema independente e um olho para os filmes menos convencionais. (O quadro de membros da Academia em geral gira em torno de seis mil pessoas ao ano; no ano passado, 271 candidatos, um número relativamente elevado, foram convidados a aderir.)

A criação de uma seção para os diretores de elenco, em 2013, quase certamente elevou o número de votantes mais sintonizados com a construção de personagens e com o desempenho de atores e talvez menos interessados nos efeitos visuais de escala colossal que são a base dos filmes com os quais boa parte de Hollywood ganha a vida.

Para muita gente em Hollywood, o resultado ficou dolorosamente visível no domingo, quando Neil Meron e Craig Zadan, os produtores da cerimônia de premiação, criaram um extravagante espetáculo de variedades com algum espaço para o cinema - mas quase como se este tivesse sido incluído como bônus.

Pelo menos meia dúzia de vezes, o apresentador Harris prometeu que a apresentação de Lady Gaga - a maior atração da noite - estava chegando.

Ela atraiu mais atenção do que muitos dos vencedores de prêmios menores. Um momento surreal na sala de imprensa a apanhou cantando canções de "A Noviça Rebelde", lançado 50 anos atrás, enquanto Laura Poitras, diretora do documentário "Citizenfour", sobre Edward Snowden, denunciante da espionagem governamental, tentava falar sobre a invasão da privacidade pessoal pelo governo.

Outro momento desagradável surgiu quando Dana Perry, que venceu, com Ellen Goosenberg Kent, o Oscar de melhor documentário de curta metragem, com seu filme sobre serviços de assistência telefônica a suicidas, estava dedicando o prêmio ao filho, dizendo: "Nós o perdemos para o suicídio, e deveríamos falar bem alto sobre o suicídio".

No exato momento, a orquestra começou a tocar para encerrar sua fala, enquanto Harris chegava ao palco para restaurar a alegria do espetáculo.

"Adorei o vestido", ele disse a Perry, enquanto ela era conduzida aos bastidores.

Como mostram os índices de audiência, o público não se impressionou. Talvez as pessoas tenham optado por ir ao cinema. Analistas de bilheteria apontaram que as vendas de ingressos foram incomumente forte no domingo, em geral um dia fraco para as bilheterias.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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