Folha de S. Paulo


Análise: Bússola de Tomie apontava para a contemplação e o silêncio

Num certo dia em 1960, o fusquinha de Willys de Castro e Hércules Barsotti, os únicos artistas paulistas do carioquíssimo grupo de neoconcretos, voltou de sua contumaz peregrinação ao Rio e, em vez de rumar para casa, desviou para a rua da Paz, no bairro da Mooca, onde viviam a pintora Tomie Ohtake e seus filhos Ruy e Ricardo.

Daquela vez, Willys viera animado por um comentário do amigo Mário Pedrosa, de que seria importante aos neoconcretos a apreciação mais acurada da obra da artista.

Pedrosa, cujo prestígio naquele tempo era soberano, participara do júri do Salão Nacional que premiara Tomie Ohtake e julgara encontrar na sua obra uma libertação da geometria sem, no entanto, cair na expressão "dos desejos e faniquitos" que caracterizava grande parte do abstracionismo informal de então.

Naquele tempo, também o debate estético era inflamado, apresentando posições teóricas diversas e frequentemente irredutíveis entre si.

Foi, portanto, dentro de um cenário exigente que a obra de Tomie Ohtake surgiu e se consolidou. Uma obra surpreendentemente iniciada quando a artista se aproximava dos 40 anos.

O que chama a atenção na pintura dos primeiros anos de Tomie é a entrada imediata na abstração, mas no sentido contrário do dramatismo de seus colegas como Manabu Mabe (1924-1997) ou Tikashi Fukushima (1920-2001), com suas telas de colisões de cores e de uma gestualidade frenética, expressa nos rastros deixados pelo pincel na passagem pela massa deliberadamente espessa de tinta.

Mas a bússola de Tomie apontava para a contemplação e o silêncio, inequívoca herança do Japão, como há pouco analisou Paulo Herkenhoff.

Nas telas desse período, um grupo expressivo delas realizadas às cegas, as cores quase nunca comparecem, salvo o branco e o preto e os tons sombrios que lhes servem de passagem. Através da narração discreta das pinceladas, acontece uma surpreendente identidade entre o claro e o escuro, como um corpo pesado que se descobre leve e passa a flutuar.

A cor é um capítulo à parte na obra de Tomie. O modo destemido como ela a introduz, estabelecendo meticulosas relações entre formas e gestos, contrastes e modulações tonais arriscadas, por incomuns, surpreendeu o meio artístico.

FORMAS SENSUAIS

A passagem dos anos 1970 para os 1980 trouxe pesquisas ainda mais elaboradas, com as cores jogando com as pinceladas na produção de superfícies pulsantes, dotadas de profundidades variadas no interior de tensões entre elementos geométricos e formas orgânicas e sensuais. Tudo isso serviu para que fosse considerada a nossa maior pintora, o que não a impediu de avançar pelo âmbito da escultura.

A consagração, com prêmios e convites pelo mundo, foi uma decorrência natural.

A criação do Instituto Tomie Ohtake, em 2001, foi decisiva para divulgar ainda mais sua obra. Os anos 2000 fizeram-nos saber que tínhamos o privilégio de viver no mesmo tempo da genial Tomie Ohtake, a grande mestra das cores, incansável e brilhante como Henri Matisse em seu final, capaz de realizar uma nova e "experimental" série de pinturas, em novembro passado, no mês em que completava 101 anos.

AGNALDO FARIAS é crítico e curador de arte e professor da FAU-USP


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