Folha de S. Paulo


Opinião: Hércules Florence criou um mundo originalíssimo e secreto

Como seria a história da sensibilidade se o nascimento da técnica moderna fosse íntimo da natureza? Como seria a tecnologia se ela surgisse na América do Sul, em plena selva?

Seguir o itinerário dessas perguntas é se juntar a Hércules Florence na viagem pelo Mato Grosso que marcaria sua vida. Atravessar o Pantanal na temporada de chuvas; desenhar um sistema para captar os sons da selva; pintar depois de seu companheiro Taunay ter sido devorado por piranhas; assistir à loucura do chefe da expedição, o barão Langsdorff, tomado por febres; contar tudo em seu diário.

Queriam viajar por regiões inexploradas, e se propuseram a chegar ao Nordeste por dentro do país; disseram-lhes que seu itinerário era como o voo de Ícaro. A história de Hércules é hercúlea: é um artista aventureiro vadeando os limites de uma nova sensibilidade.

Para Hércules, escrever é uma maneira de inventar: em seus escritos, visita a fotografia, a anatomia das nuvens nos céus, os sinais estenográficos, o papel inimitável, a zoofonia, "o atlas pitoresco celeste".

À diferença de outros viajantes, Florence fez mais que um catálogo de vistas: criou um DNA da memória do não visto. Sua imaginação é barroca e inventiva. Não se limita a registrar: ele constrói, desenha os instrumentos, entra na selva.

Quando conheci a sua história, apaixonei-me na hora. Mas assim como Hércules não conseguia fixar suas fotos, eu não podia fixar Hércules. Não encontrava a linguagem para seus excessos. Estudando-o me veio a certeza: Hércules tinha de ser uma ópera. Em novembro estreamos "Hércules no Mato Grosso", no Teatro Colón, em Buenos Aires.

A ópera começa com Hércules e Langsdorff emboscados pelas deusas dos rios, as temidas e sedutoras Anacondas, e a viagem continua: em maio estrearemos em Nova York.

Hércules Florence é um herói romântico sul-americano: é a história de um fracasso. Depois de anos tentando fixar suas fotografias sem êxito, soube que haviam conseguido em Paris. Como sempre na América do Sul, por trás de cada fracasso há uma reviravolta.

Se ele não foi o capitão inicial da era da reprodutibilidade técnica, suas invenções dão conta da criação de um mundo originalíssimo e secreto.


POLA OLOIXARAC é escritora argentina, autora de "As Teorias Selvagens" (Benvirá)


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