Folha de S. Paulo


Biógrafo de Harper Lee diz que autora está sendo manipulada

A notícia de que a reclusa escritora Harper Lee, 88, finalmente lançará outro livro causou furor no mercado editorial norte-americano. Editores, livreiros e cineastas despertaram com cifrões nos olhos arregalados.

"Go Set a Watchman" (arrume um vigia) chegará às livrarias dos EUA em 14/7 e terá tiragem inicial prevista de dois milhões de exemplares. As pré-vendas já bateram recorde na Amazon e uma versão para Hollywood foi aventada por Oprah Winfrey.

Na cidade natal de Lee, a pequena Monroeville, no Alabama, comerciantes preparam-se para nova onda de turistas e jornalistas.

Ao mesmo tempo, porém, várias vozes vêm expondo a suspeita de que a escritora, hoje morando num asilo, cega, surda e debilitada por uma série de infartos, estaria sendo manipulada por sua advogada, Tonja Carter.

"Alguém está tirando vantagem de nosso tesouro nacional, Harper Lee, aos 88?", perguntou a atriz e ativista Mia Farrow, no Twitter.

Mandel Ngan/AFP
A escritora Harper Lee recebe a Medalha da Liberdade, em 2007
A escritora Harper Lee recebe a Medalha da Liberdade, em 2007

Para o principal biógrafo da autora, Charles Shields, sim. Em entrevista à Folha, por telefone, o autor de "Mockingbird: A Portrait of Harper Lee" (2006) disse que a escritora já não estaria consciente de seus atos e caíra nas mãos de aproveitadores.

"Lee não está em condições de dar um consentimento para a publicação de nada", afirmou ele.

Segundo ele, a escritora conhecia o paradeiro desse rascunho e expressara diversas vezes que não o queria publicado. A afirmação contradiz a da advogada de Lee, Tonja Carter, que disse tê-lo encontrado apenas recentemente e por acaso.

No domingo, a advogada ainda declarou ao jornal "The New York Times" que sua cliente está "magoada e humilhada" com as insinuações de que esteja sendo enganada.

O editor de Lee na Harper Collins, Hugh Van Dusen, admitiu que todas as tratativas estão sendo feitas por meio de Tonja Carter e que ninguém da editora viu ou falou com Lee recentemente.

"Apenas Tonja fala com ela, é muito difícil ter acesso", disse à imprensa local.

O biógrafo conta ainda que, ao reconstruir os primeiros tempos da autora em NY, topou com a correspondência de Lee com sua agente literária e com o editor. Nas cartas, se discutia o que deveria ser feito com esse texto. Tratava-se de um romance cuja protagonista viajava para a cidade natal para visitar o pai.

"O editor não estava entusiasmado com a história e instou Lee a abandoná-la. Até que surgiu a ideia de voltar no tempo e contar a história da mesma personagem, só que ainda criança. Ficou claro que a nova versão a ser escrita deveria substituir a original", diz Shields.

Lançado em 1960, "O Sol É Para Todos" se transformou num clássico da literatura norte-americana. Retratando o Sul nos anos da Depressão (década de 1930) e denunciando a injustiça racial, o romance venceu o Pulitzer e vendeu, até hoje, 40 milhões de cópias.

A adaptação ao cinema, em 1962, levou três Oscar. Lee nunca mais publicaria.

Ao longo da vida, deu poucas entrevistas e apareceu publicamente em raras ocasiões. Optou pela vida simples na Monroeville natal.

Nas raras ocasiões em que era perguntada sobre a razão de não escrever mais, Lee dizia: "Eu não encararia a pressão e o desgaste da divulgação que tive de aguentar com 'O Sol É para Todos'. Além disso, o que eu tinha para falar eu já disse e não direi de novo".

Reprodução/Twitter/sheri_reads
Capa do livro 'Go Set a Watchman', de Harper Lee
Capa do livro 'Go Set a Watchman', de Harper Lee

MORTE DA IRMÃ

Para o biógrafo, é muito suspeito que o anúncio do lançamento do livro tenha sido feito justo agora, apenas três meses depois da morte da irmã da autora, Alice Lee, advogada e responsável por sua obra.

"Alice não apoiaria esse lançamento. Ela vinha protegendo a irmã dos oportunistas que a procuravam atrás de inéditos e rascunhos."

Shields lembra que, nos anos anteriores à sua morte, aos 103, Alice moveu processos contra editores e entidades que considerava desejarem tirar vantagem de Lee.

Alice e Tonja Carter não se davam bem. A irmã da autora acusou a advogada de fazer com que Lee assinasse a autorização para que a Harper Collins lançasse o clássico romance em e-book, algo a que sempre se opusera (o romance acabou, sim, saindo digitalmente, em 2014).

Na época, Alice declarou: "Ela não vê e não escuta e vai assinar qualquer coisa que puserem diante de seus olhos".

Um amigo da família disse à Associated Press que, no funeral da irmã, Lee "falava em voz alta consigo mesma e gemia de uma maneira que chocou os presentes".

"De qualquer forma, um novo livro de Harper Lee tem mais é que virar notícia mesmo. Espero que levante questões pertinentes sobre essa indústria dos 'inéditos' e sobre a autoridade que os escritores têm sobre o que deixaram escrito", completa o biógrafo.


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