Folha de S. Paulo


Opinião: Hollywood responde à bomba atômica com um lixo nuclear

Existe o limite da graça até na ironia, na sátira e no humor negro. É a infâmia. E em "A Entrevista", as piadas são infames. A terra da liberdade tentando fazer piadas com o país que não permite piadas.

Premissa interessante, mas, no filme, até a autoironia que deveria ser a demonstração da inteligência configura-se como a pura prepotência da estupidez.

A arma do filme é a mesma que a Coreia do Norte usa para perpetuar a ignóbil e a abjeta dominação política e social: desinformação. O que existe na Coreia do Norte não é ditadura, e sim teocracia.

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Cena do filme 'A Entrevista', de Seth Rogen
Cena do filme 'A Entrevista', de Seth Rogen

Eu me lembro de que, quando ainda era menino na Coreia do Sul, houve uma exposição de material didático norte-coreano. Matemática. "Se o fabuloso e invencível exército da República Democrática Popular da Coreia do Norte destrói sete dos dez tanques dos imundos e covardes americanos, quantos tanques sobram?"

Também me lembro da recompensa por "pira". O "pira" é um panfleto com propaganda política –mostrando a pujança econômica, a superioridade bélica e os dons divinos do amado líder– que os norte-coreanos jogam de avião no solo sul-coreano.

Entregando-o no posto policial, meninos sul-coreanos ganhavam 50 won (cerca de US$ 0,10, nos anos 1980). Mas era necessário entregar sem ler (!). Senão não valia.

Fuga do Campo 14
Blaine Harden
livro
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Assim, mesmo estando na Coreia do Sul, do outro lado da fronteira, podemos traçar um pouco da dimensão da lavagem cerebral que é a política insana de Kim Jong-un. Estima-se que mais de 3 milhões de norte-coreanos morreram de fome nesta última década.

Existem campos de concentração para os que são contra o regime e, até no campo, é preciso delatar mãe e irmão para sobreviver, como a história do fugitivo Shin Dong-hyuk, contada em "Fuga do Campo 14", de Blaine Harden (Intrínseca, 2012, R$ 29,90).

atentado

Assista ao filme e leia o livro. Hollywood responde à bomba atômica com um lixo nuclear. Juro que queria rir. Mas o filme é um atentado à inteligência.

Assim como, talvez, eu terei que responder sempre com um sorriso amarelo (desculpe o trocadilho, que o filme faz de propósito) a fatídica pergunta: "Você é do sul ou do norte?".


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