Folha de S. Paulo


Atrofia e tiro vão revelar se ossada descoberta em Madri é de Cervantes

A descoberta, no último sábado (24), de um caixão com as iniciais de Miguel de Cervantes (1547-1616) foi o maior feito de um trabalho que há nove meses move dezenas de especialistas em Madri, mas estes ainda evitam cravar que acharam os restos mortais do autor de "Dom Quixote".

O caixão com as iniciais M.C. foi localizado 4,8 m abaixo do nível do chão, em uma cripta no convento das Trinitárias. Sempre se soube que Cervantes foi enterrado no local, mas o ponto exato não era conhecido -inclusive porque a igreja, de 1612, passou por grandes reformas.

A identificação da ossada deve demorar. Em avançado estado de decomposição, o caixão se desmanchou, e ossadas externas se misturaram com as de seu interior.

Sociedade de Ciência Aranzadi/AFP
Fragmentos do caixão em que estaria o escritor Miguel de Cervantes; na peça no canto inferior direito, as iniciais M.C.
Fragmentos do caixão em que estaria o escritor Miguel de Cervantes; na peça no canto inferior direito, as iniciais M.C.

Segundo os especialistas, entre as ossadas há algumas de crianças e de mulheres. A tarefa, agora, será separá-las, para então tentar identificar a de Cervantes, a partir de lesões conhecidas dele.

Entre elas, marcas de uma atrofia nos ossos da mão esquerda e o impacto de um tiro de arcabuz no peito, resultados de feridas sofridas por Cervantes, em 1571, quando participou da batalha naval de Lepanto, em que espanhóis e outros povos cristãos barraram a expansão de turcos para o Ocidente.

Também serão levados em conta a idade com que Cervantes morreu, 69 anos, e o fato de que ele tinha apenas seis dentes ao morrer.

Algumas das raras indicações sobre a aparência de Cervantes aparecem nos prólogos que ele escreveu para seus livros. No de "Novelas Exemplares" (1613) o autor imagina um amigo hipotético a descrevê-lo com irreverência.

Sobre seus dentes, o tal amigo diria que eram "nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns com os outros".

Outro trecho informa que ele teria perdido, "na batalha naval de Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareça feio, ele o considera formoso por tê-lo conseguido na mais memorável e difícil das ocasiões que os séculos passados jamais viram".

O texto, no entanto, não deve ser encarado como um autorretrato fiel. Cervantes tinha por hábito escrever prólogos parodísticos, bem ao tom das de "Dom Quixote".

CRUZADA QUIXOTESCA

A descoberta do caixão resulta de cruzada quixotesca empreendida pelo historiador Fernando Prado Pardo-Manuel de Villena, 51.

Ele se dedicou à empreitada a partir de 2011, após se perguntar por que nunca ninguém havia se certificado da localidade do túmulo.

Conseguiu, com a madre superiora do convento, enclausurada desde os anos 1950, autorização para colocar máquinas geolocalizadoras na tumba e para que a equipe de pesquisadores abrisse a cripta do escritor.

A importância da descoberta é algo a se avaliar. Em entrevista ao "Guardian", em 2011, Pardo-Manuel argumentou que a reconstituição a partir dos ossos permitiria saber como era a fisionomia de Cervantes e como ele morreu -especula-se que de cirrose, diabetes ou até malária.

Quem ganhará com a descoberta certamente será Madri, cujo turismo terá um incentivo a mais, já que a tumba deve permanecer no convento, mas identificada.

A investigação está sendo custeada pela prefeitura de Madri, e deve continuar até os especialistas se certificarem de que se trata, ou não, da ossada de Cervantes.

Editoria de Arte/Folhapress

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