Folha de S. Paulo


Detida em Havana, Tania Bruguera fala sobre os novos tempos na ilha

"Existem coisas em Cuba que todo cubano sabe que não pode dizer. O problema é que há uma má educação invisível aqui, em que aprendemos os limites antes de aprender a ver os horizontes

Um sussurro virou grito. Tania Bruguera assistia a uma missa do papa em Roma quando soube da retomada das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos anunciada no mês passado, um acordo costurado pelo pontífice.

Dissidente, ativista política e uma das artistas mais influentes do mundo, a cubana decidiu testar o novo momento político duas semanas depois da notícia com uma performance na praça da Revolução, em Havana, cenário dos intermináveis discursos de Fidel Castro e símbolo da utopia fracassada da ilha.

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Tania Bruguera faz roleta-russa durante performance na Bienal de Veneza, em 2001
Tania Bruguera faz roleta-russa durante performance na Bienal de Veneza, em 2001

Sua ideia era reencenar ali uma ação realizada na Bienal de Havana há seis anos, em que abriu um microfone ao público para que dissessem o que quisessem por um minuto, sentindo só o gostinho da liberdade de expressão.

Não rolou. O "Sussurro de Tatlin", como Bruguera, 46, chamou a obra, em alusão ao arquiteto russo que desenhou o monumento à Terceira Internacional Comunista, uma torre metálica gigantesca que nunca saiu do papel, não passou de um gemido na praça.

O ruído veio depois. Acusada pelo governo de praticar "resistência e desordem", Bruguera foi presa no fim do ano passado, antes mesmo de realizar sua performance, por dez policiais que cercaram a casa de sua mãe em Havana.

Ela foi solta 20 horas mais tarde, mas teve seu passaporte e computador confiscados e está impedida de deixar a capital cubana, onde é monitorada o tempo todo pela polícia. Uma assistente da artista também avisou que seus telefones estão grampeados.

Enquanto isso, mais de mil artistas e intelectuais assinaram uma carta criticando sua detenção –Bruguera é um dos nomes mais relevantes na cena global, tendo participado da Bienal de Veneza e da Documenta, em Kassel, na Alemanha, sempre com ações polêmicas.

Mas sua performance censurada na praça da Revolução acabou se revelando sua obra mais potente, mostrando que o regime de Raúl Castro não está pronto para a nova realidade que a ilha tenta esboçar.

Da casa de sua mãe, em Havana, Bruguera deu entrevista à Folha por telefone. Leia a seguir trechos da conversa.

*

Folha - Qual foi sua primeira reação ao acordo firmado entre Cuba e Estados Unidos?

Tania Bruguera - Foi uma surpresa. Ninguém esperava isso. Me parece fantástico, porque o embargo nunca funcionou e quem mais sofria com ele era o povo cubano.

Mas essas mudanças também trazem certos alertas. Este é o momento de criar estruturas cívicas de longo prazo, para que Cuba não volte a ser o cassino que era antes. Vamos importar só os McDonald's e turistas bêbados para urinar no monumento a José Martí ou também a tradição da luta por direitos civis dos Estados Unidos?

Escrevi uma carta ao Raúl Castro dando os parabéns por essa ação histórica. Mas dizia também que seria bom que essas renovações abrissem espaço para que todos pudessem dizer o que pensam sem medo ou censura.

Mas o que houve em Havana no dia de sua performance parece negar essa possibilidade.

Existem coisas em Cuba que todo cubano sabe que não pode dizer. O problema é que há uma má educação invisível aqui, em que aprendemos os limites antes de aprender a ver os horizontes. Nos ensinam a ter medo antes de qualquer outra coisa.

Tanto que disseram que a tentativa de fazer essa performance era uma ação kamikaze, uma atitude suicida.

Na Bienal de Veneza, aliás, você fez uma roleta-russa diante do público. Sentiu mais medo então ou agora?

É como se eu tivesse feito outra versão da roleta-russa, só que com outros tipos de balas e outros tipos de consequências. Sei que essa ação vai me custar muito caro, mas estou contente como artista.

Depois de anunciar a performance pelo Facebook, como foi a sua chegada a Havana?

Quando cheguei, já estavam me esperando no aeroporto. Havia um funcionário do Ministério da Cultura e um suposto jornalista, que ficou tirando fotos. No dia seguinte, começou uma campanha na imprensa para me desacreditar, dizendo que a "contrarrevolucionária Tania Bruguera" estava de volta. Montaram um teatro para ver se me faziam mudar de ideia.

Esperava essa reação das autoridades mesmo já tendo feito essa performance antes?

Estamos acostumados a não poder dizer o que pensamos. Mas me surpreende que o governo tenha tanto medo do entusiasmo do povo agora por causa de uma notícia que ele mesmo gerou.

Quando fiz esse trabalho pela primeira vez também houve problemas. Deixaram acontecer, não interromperam porque seria um escândalo, mas depois impediram que participantes da ação entrassem em centros culturais.

Fica a impressão que não passaram dos limites comigo desta vez para evitar um escândalo em torno dos direitos humanos, já que os acordos com os Estados Unidos estão sendo firmados agora. Querem evitar desaforos, mas está claro que a única coisa que interessa para esse governo é dinheiro. E isso dói muito.

Como foi o momento da sua prisão? O que perguntaram?

Um grupo de policiais cercou a casa da minha mãe e me levou dizendo que eu voltaria em uma hora. Não me deram voz de prisão, mas me mandaram vestir um uniforme de detenta. Fiquei 20 horas em poder deles sem que a minha família soubesse onde eu estava.

Queriam saber de onde vinha o dinheiro para criar minhas obras e se eu tinha vínculos com a inteligência americana. Disseram que eu não poderia mais mostrar meu trabalho no país e que jamais poderia voltar a participar da Bienal de Havana. Em Cuba, os artistas que não têm o aval do Ministério da Cultura se tornam vítimas do Estado.

Você se sente uma vítima?

Não é o castigo que me preocupa, são as técnicas que usam para intimidar as pessoas. Mas não me deixo intimidar se sei que não fiz nada de errado. Estou sofrendo uma tremenda pressão psicológica por causa de mentiras.

Estão reagindo da forma como reagiam no passado, mas não está funcionando porque estou criticando a revolução de dentro dela. Isso rompe com os parâmetros.

Minha ideia sempre foi criticar a partir da esquerda, do ponto de vista de quem acreditou na revolução e está no sistema. O que a minha obra tenta fazer é criar um imaginário político diferente, demarcar um espaço para o futuro.

Lamenta que a performance não tenha acontecido?

Na verdade, a performance aconteceu, mas foi outra performance. Foi um episódio tão extremo que serviu para desmascarar todo o regime. Estou enfrentando todo o maquinário de um governo que desarma as pessoas por um viés emocional, tentando destruir a sua imagem.


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