Folha de S. Paulo


Almodóvar anuncia que vai gravar novo filme, 'Silêncio'; leia entrevista

O bairro de Soho, em Londres, costumava ser sinônimo de uma vida boêmia —um refúgio para sex shops, tráfico de drogas e bares subterrâneos—, mas hoje a região está se tornando respeitável.

Os bares hipsters cada vez mais superam os palácios pecaminosos decadentes, a ponto de algumas pessoas exigirem que partes do bairro sejam protegidas oficialmente. Casas de striptease seriam um patrimônio cultural.

Quem melhor lugar, pelo menos em Londres, para conhecer o diretor de cinema Pedro Almodóvar, que chocou o establishment na Espanha no começo dos anos 1980 com suas histórias irreverentes de sexo, drogas e rock'n'roll, e ainda é uma das figuras mais admiradas do país?

Nos encontramos em uma pequena sala de jantar privada e Almodóvar aparece com uma jaqueta marrom, um lenço de estampa preta e branca e um sorriso caloroso. Aos 65 anos, ele ainda ostenta uma uma cabeleira invejável, mesmo que seja branca. Ele reclama de ser sensível à luz e não ouvir bem em uma orelha. Sentamos de acordo com essas exigências.

Almodóvar está em Londres para ver uma uma prévia de uma adaptação de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" para o teatro, a comédia frenética de 1988 que fez o diretor ser notado por um grande público internacional. Então é de se esperar que a conversa comece da mesma forma que o filme —falando sobre dublagem.

Divulgação
Cena de
Cena de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", de Almodóvar

No filme, Carmen Maura faz o papel de Pepa, uma dubladora abandonada pelo seu amante e companheiro de dublagem. A ela restou só o som da voz do ex-companheiro. A premissa é típica de Almodóvar, uma carta de amor ao cinema e uma imagem de força feminina: Pepa segue em frente independentemente das dificuldades que a vida, e particularmente os homens, impõem a ela.

"Eu odeio dublagem —era usada por Franco como uma forma de censura", diz Almodóvar, "mas é um complemento da linguagem do cinema que me interessa muito. Duas pessoas na frente da tela tentando sincronizar seus lábios com o que está sendo dito; é um ritual que é apaixonante para mim e converte o filme em algo quase sagrado".

Como não sou falante nativo de espanhol, me senti como se eu estivesse sendo mal dublado para a língua enquanto nós falávamos sobre amenidades e tomávamos chá inglês. Felizmente, Almodóvar conversa de forma efusiva e expansiva e se contenta em falar mais do que eu, em um espanhol animado e rápido falado entre mordidas em pãezinhos.

Sobre o musical de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", pergunto: uma adaptação para a língua inglesa conseguirá realmente captar o que o diretor chama de "musicalidade" de seus diálogos, ou o crucial sabor espanhol da obra?

"É preciso convertê-lo em algo diferente", diz ele, enfaticamente. "O diretor [do musical], Bartlett Sher, ficou muito preocupado em ser fiel ao filme, mas eu falei várias vezes que dava toda a liberdade que ele quiser. Eu confio neles e fiquei obcecado em mostrar que eles tinham toda a liberdade do mundo, para que eles não se sentissem oprimidos pela minha sombra, pela minha presença".

Recentemente, Almodóvar tem revisitado o gênero em que ele começou a trabalhar: comédia picante. Em "Os Amantes Passageiros" (2013), um avião cheio de pessoas circula pelo espaço aéreo espanhol, enquanto elas vão ficando cada vez mais bêbadas, com tesão e fora de controle. Muitos viram isso como uma metáfora para o estado turbulento da própria Espanha.

"Os Amantes Passageiros" foi um sucesso de bilheteria no país de origem mas, excepcionalmente para Almodóvar, não conseguiu elogios da crítica. "Em geral [comédia é] considerada um gênero menor", diz ele. "Mas, pelo contrário, é um gênero superior, especialmente na forma como Ernst Lubitsch ou Billy Wilder fizeram".

Será que a comédia é tida como entretenimento na época em que é feita, e só ao longo do tempo ganha um significado mais profundo? "Sim, mas o tempo também pode destruir", diz Almodóvar. "O tempo é muito cruel para o cinema, mais do que para a literatura na minha opinião. Mas estou muito feliz porque o tempo tem me respeitado. Muitos críticos na Espanha não fazem o mesmo, mas eu não me importo. Para mim o tempo tem mais valor que os críticos".

O diretor não tem a intenção de virar as costas para o gênero só porque ganhou elogios por seus dramas. "Eu adoraria fazer outro filme como 'Mulheres à Beira', mas eu não consegui. Olhando para trás agora, esse filme é uma comédia, uma ficção, mas, ao longo do tempo, ele parece representar muito bem a década de 1980, na Espanha, quando ele foi feito. Sem que eu tenha tido essa intenção, ele capta a tolerância do tempo, a alegria de viver naquele tempo".

A transgressão pela qual Almodóvar ficou conhecido hoje pode ser encontrada no mainstream da televisão norte-americana, em séries como "Desperate Housewives", "Nurse Jackie" e "Breaking Bad".

"Acho que nesse momento, nos Estados Unidos, está sendo produzido conteúdo para a televisão que é mais próximo da realidade do que o cinema", diz ele. "'Breaking Bad' é como o antigo Scorsese, é a televisão mais ácida e brutal possível. E, em cinco temporadas, cada episódio é uma obra-prima de roteiro, direção e exagero —não do tipo que exagera a realidade, mas que mostra uma realidade que já é muito extrema. Acho que 'Breaking Bad' é o ápice da TV ficcional norte-americana".

Nesse sentido, diz ele, a TV está superando o cinema. "Cinema é um negócio, mas [os estúdios de Hollywood] não podem esquecer que há outras formas de fazer filmes O que eu vejo é uma ausência de opções para fazer cinema que seja mais pessoal mas que também entretenha as pessoas".

É por medo de se restringir assim que Almodóvar resistiu tanto aos apelos de Hollywood, que tenta seduzi-lo há tempos, especialmente desde que ele ganhou dois prêmios Oscar. "Eu posso fazer um filme em inglês, mas não necessariamente em Hollywood", disse ele. "Eles me ofereceram 'Brokeback Mountain', mas tive muitas dúvidas. Pensando a respeito agora, não sei se errei ou não. Prometeram que iam me dar liberdade artística, mas era uma história tão física —não só porque eles dormiam juntos uma vez —e aquilo precisava estar lá. Acho que o Ang Lee foi o mais longe que pôde e gosto muito da versão dele. Eles não teriam me deixado fazer diferente, do jeito que imagino".

Loic Venance - 17.mai.14/AFP
Pedro Almodóvar
Pedro Almodóvar

Felizmente para Almodóvar, e apesar da crise econômica na Espanha, ele ainda pode financiar seus filmes e fazê-los "en casa", como diz ele. Mas ele não tem ilusões: "Pra mim está tudo bem, mas sou uma exceção", afirma. "Conheço muitos diretores espanhois que estão fazendo filmes em cooperativas. Ninguém está pagando nada, nem para eles nem para os funcionários".

E o próximo filme do diretor, do qual até agora só há rumores? "O roteiro está terminado e vamos gravar em abril", anuncia ele. "Estamos decidindo o elenco agora, o que é complicado, porque o que eu escrevi não funciona com os meus 'atores amigos'."

O diretor se volta a sua assistente e pergunta se pode revelar o nome do filme, que até agora ainda não foi anunciado nem na mídia da Espanha, e ela sai da sala. "É um retorno ao cinema das mulheres", ele continua dizendo, "de grandes protagonistas femininas. É um drama impactante, o que me empolga".

A assistente volta e sussurra na orelha de Almodóvar que ele pode, sim, revelar o título. "O título é 'Silêncio', porque esse é o elemento principal, que leva às piores coisas que acontecem com a mulher protagonista".


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