Folha de S. Paulo


Maternidade precoce impulsionou carreira de estrela de "Boyhood"

Quando Patricia Arquette tinha 19 anos, a enérgica e rebelde aspirante a atriz dividia seu tempo entre empregos como garçonete e na Planned Parenthood e audições para filmes e televisão, até o dia em que descobriu que estava grávida; ela na época vivia em Los Angeles com seu namorado, um músico punk.

Os dois decidiram ter o bebê, um menino chamado Enzo. Um mês depois que ele nasceu, Arquette e o pai da criança se separaram, e ela, além de atriz iniciante, se tornou também mãe solteira.

É uma combinação que muitas vezes torpedeia uma carreira, mas para Arquette a inquietação intelectual se combinou ao instinto materno de, em suas palavras, "arrastar comida para a mesa de meus filhos", e serviu para firmar uma férrea determinação.

"Não acho que eu teria feito uma grande carreira se não tivesse meu filho", disse Arquette, 46, em uma entrevista em Hollywood no final do ano passado.

Tendo de sustentar o filho e a si mesma, ela também se viu subitamente arremessada à tarefa de cantar o ABC e assistir "Vila Sésamo" com o menino. "Eu ficava pensando que tinha tantos sentimentos adultos e não tinha onde colocá-los; precisava de um escape, e logo", ela disse.

Em retrospecto, parece inevitável que Arquette se visse escalada para "Amor à Queima-Roupa", clássico cult de Tony Scott, no papel da sexy e selvagem Alabama Whitman, contracenando com Christian Slater. (Enzo interpreta o filho do casal no filme, e aparece brincando em uma praia.) O papel conduziu Arquette a uma carreira firme no cinema de arte, em trabalhos dirigidos por cineastas como David Lynch, Michel Gondry e David O. Russell.

Ser mãe muito cedo também ajudou Arquette a conquistar seu papel mais importante em anos, como a divorciada Olivia, em "Boyhood", de Richard Linklater, que acompanha a vida de um menino, Mason (interpretado por Ellar Coltrane), dos seis aos 18 anos.

DOZE ANOS
Acompanhando os momentos silenciosos da vida, e o amadurecimento de pais e filhos, o filme causa lágrimas às plateias e vem sendo considerado sério candidato a prêmios, especialmente para Arquette, que está fazendo sua primeira campanha como candidata ao Oscar. Ela já conquistou diversos prêmios da crítica como atriz coadjuvante e foi indicada a um Globo de Ouro.

"Gostei da coragem dela no papel, da sua realidade", diz Linklater. "Conversamos sobre sua vida como mãe jovem, mãe solteira, mãe casada. Não consigo imaginar trabalhar com alguém que não tivesse filhos".

Em sua vida pessoal, Arquette passou por tudo isso e um pouco mais durante a produção do filme -casou-se com o ator Thomas Jane, teve mais um filho, se divorciou.

Ela também fez algo de discretamente revolucionário para uma atriz de Hollywood. Nos 12 anos de rodagem de "Boyhood", ela envelheceu naturalmente e sem pedir desculpas diante das câmeras, ganhando peso e rugas no rosto ao chegar à meia-idade. "Nenhuma vaidade", diz Linklater. "Ela nunca vacilou".

De fato, em lugar de tentar esconder o envelhecimento visível, Arquette disse que isso foi um incentivo adicional para aceitar o papel. Ela há muito se incomodava com a expectativa de que deveria de alguma forma permanecer congelada no tempo, eternamente jovem, esbelta e apetecível.

"Essa ideia de que o mundo espera que você seja para sempre aquela jovenzinha ingênua - bem, é algo que dura pouco, se é o que você escolhe como carreira, e eu sabia disso desde o começo", disse Arquette. "Estava tentando escapar disso há anos".

"Preciso envelhecer, pessoal, vocês entendem?", ela prosseguiu. "Preciso de espaço para crescer, envelhecer e ser um ser humano. Não quero ficar presa nessa bolha da jovenzinha bonitinha. E nem concordo com ela, aliás".

SIMPLICIDADE
Ela chegou para a entrevista em um vestido solto e floreado, com braceletes e gargantilhas de contas, e falando em sua vez onírica, melodiosa, com algo de sulista. O clima que Arquette transmite lembra o da cantora Steve Nicks, e ela parece uma pessoa centrada mas etérea, e exala palpável simplicidade

"Ela deixa a verdade exposta", diz Ethan Hawke, que interpreta seu ex-marido e o pai de Mason em "Boyhood". "Ela sempre foi uma verdadeira heroína, por conta de sua liberdade e autenticidade emocional inacreditáveis. Ela está trazendo tudo isso à metade de nossos vidas, quando o medo abate o coração até dos mais fortes".

Atriz de quarta geração - seu bisavô trabalhava no vaudeville, seu avô e pai são atores–, Arquette cresceu em uma comuna hippie na Virgínia e depois se mudou para Los Angeles. Ela é a filha do meio entre cinco irmãos - Rosanna, Richmond, Alexis e David –, todos os quais se tornaram atores. Porque eram pobres na infância, ela e os irmãos muitas vezes se divertiam reencenando em casa as peças do grupo de teatro de seu pai.

Depois de se mudar para a Califórnia, Arquette se tornou uma pré-adolescente malandra, cabulando aulas com a melhor amiga e, aos 15 anos, saindo de casa para viver com a irmã Rosanna. Ela também se envolveu com um grupo de amigos indisciplinados.

"Punks, membros de gangues, pessoas morrendo a torto e a direito, pessoas sendo presas", disse Arquette. "Eu cheguei com facilidade àquele submundo".

Arquette pensou em se tornar parteira, e queria ser atriz, mas sofria com sua dolorosa timidez. Por isso, decidiu dedicar seu 18º ano de vida a aliviar essa timidez, e começou a estudar filmes, fazer audições e a aprender a não se deixar abater pelas rejeições.

"Eu queria ser independente", ela disse. "Queria ser uma pessoa interessante. Queria ser aventureira. Queria ser corajosa no mundo".

DETERMINAÇÃO
Ter Enzo a fez concentrar mais seus esforços. O interesse dela pelas travessuras dos amigos em clubes e casas noturnas evaporou, e foi substituído por uma determinação que propeliu sua carreira. Enzo ainda era pequeno quando Arquette conquistou seu primeiro grande papel no cinema, contracenando com Viggo Mortensen em "Unidos pelo Sangue", dirigido por Sean Penn. Depois veio o papel de Alabama - um momento marcante.

"Toda a nossa geração se abalou um pouco com o desempenho dela em 'Amor à Queima-Roupa'", diz Hawke. "Ela era a mulher mais sexy, selvagem e livre que nossa geração já tinha visto".

Depois veio uma sequência de filmes independentes, entre os quais "Estrada Perdida", "Procurando Encrenca", "A Natureza Quase Humana" e "Stigmata". Por volta da metade dos anos 2000, Arquette começou a perceber que estava perdendo papéis para atrizes mais jovens. ("Como posso ser velha demais para o papel se vou contracenar com um cara mais velho que eu?", ela se lembra de ter pensado).

Arquette terminou por aceitar o papel de uma paranormal em "Medium", uma série de TV. A decisão surpreendeu alguns de seus colegas no cinema de arte, mas atraía seu lado populista; a série duraria sete temporadas e lhe valeria um Emmy.

"A ideia em uma rede de TV é que você pode entreter pessoas mais velhas em casa, pessoas que vivem em um trailer, pessoas que não têm dinheiro para pagar uma babá ou ir ao cinema", disse Arquette. "Há algo de muito esnobe na forma pela qual o cinema e o teatro costumavam encarar a televisão. Gosto de filmes de arte pequenos e estranhos e gosto de entretenimento de massa".

E é claro que, àquela altura, ela já tinha um novo filme esquisito de arte em curso: "Boyhood". Arquette foi a primeira escolha de Linklater para o papel, e aceitou de imediato.

"Ele me disse que ia fazer um filme que seria rodado uma semana por ano durante 12 anos, acompanhando um menino da primeira à 12ª série na escola", disse Arquette. "Meu corpo inteiro reagiu - 'nossa, que ideia mais genial'. Meu filho já tinha passado dessa idade e eu sabia como a infância passa rápido".

PREPARAÇÃO
As filmagens começaram em 2002. Linklater convidou Arquette e Hawke a escolher os nomes de seus personagens, bem como os das crianças, Coltrane e Lorelei Linklater, a filha mais velha do diretor, que interpreta Samantha, a irmã do protagonista.

Como preparação, Arquette passou um final de semana antes do início das filmagens convivendo com as duas crianças em uma casa em Austin, Texas, ajudando-os em projetos de arte, preparando comida para eles, preparando seus banhos. Uma das primeiras cenas mostra os frutos dessa intimidade, com as duas crianças abraçadas a Arquette, que lê para eles.

"Patricia é uma espécie de força maternal", diz Coltrane. "É bem fácil fingir que ela é sua mãe".

Porque se tornou uma espécie de família, reunida uma semana por ano para a filmagem, o elenco está curtindo a expectativa de prêmios para "Boyhood", porque é um pretexto para que se reúnam de novo.

"Não sinto tanta falta deles agora quanto vou sentir", disse Arquette.

Enquanto isso, ela voltou à TV, com um papel principal em "CSI: Cyber", que estreia este ano.

"Quero trabalhar naquilo em que eu quiser trabalhar", ela disse, "e não quero que sociedade alguma me dite essa escolha".

Linklater, de sua parte, a vê como uma mulher que atingiu a plenitude.

"Ela queria muito se tornar adulta", disse. "É isso que seu espírito realmente desejava".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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