Folha de S. Paulo


Seleção do Brasil na Bienal de Veneza mostra país sombrio

Quando levar suas obras ao pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza, em maio do ano que vem, Antonio Manuel vai dar um desfecho a uma história de quase quatro décadas.

Não há registros visuais, mas esse artista português radicado no Rio já teve uma obra na mostra italiana. Em 1976, durante a ditadura no Brasil, ele foi convidado para o evento, mas não pôde deixar o país. Mandou uma obra, só que nem chegou a ver de que forma foi exposta.

Manuel, que fez de seu trabalho uma crítica ferrenha ao regime de exceção, terá o maior destaque no pavilhão do Brasil nos Giardini, espaço que vai dividir com os artistas André Komatsu e Berna Reale.

"Vejo uma unidade entre os artistas", diz Manuel. "Há uma identidade de linguagem." Essa seleção, de Luiz Camillo Osorio, reflete, aliás, o que o curador chama de "conflituosa sociabilidade brasileira".

Enquanto Manuel, artista que despontou nos anos 1960, escancarava os desmandos da ditadura e continuou tratando de temas espinhosos, os dois artistas mais jovens refletem sobre a ideia de um corpo violentado pela configuração sócio-política atual do país.

Divulgação
'Fantasma', instalação com pedaços de carvão suspensos no ar, simulando uma explosão, do artista Antonio Manuel
'Fantasma', instalação com pedaços de carvão suspensos no ar, do artista Antonio Manuel

"Essas estratégias com o corpo surgiram na obra do Manuel nos anos 1960 e germinaram na produção contemporânea", diz Osorio. "Tem a ver com a ideia de uma arte que abre horizontes e reconfigura o estado das coisas."

No caso, a obra da performer Berna Reale pode ser lida como desdobramento visceral da obra plástica de Manuel, que no início da carreira invadiu nu um vernissage no Museu de Arte Moderna do Rio.

Talvez a escolha mais surpreendente para a mostra, Reale é uma artista de Belém que despontou há pouco no circuito, chamando a atenção da crítica com ações como aquela em que serviu um banquete de vísceras sobre o corpo nu a uma revoada de urubus ou quando foi carregada nua e pendurada como um pedaço de carne pela cidade.

Numa reflexão mais ligada à arquitetura, André Komatsu cria grandes instalações com fragmentos de concreto e madeira sempre em equilíbrio precário, uma espécie de construção às avessas que discute o urbanismo problemático das metrópoles brasileiras, em especial São Paulo.

"É um pensamento crítico sobre o entorno", resume Komatsu. "Vejo a arquitetura mais como um instrumento de poder para entender a sociedade. É menos a construção e mais a forma de demarcar os territórios urbanos."

Em sua última mostra no Museu de Arte Moderna do Rio, Manuel também criou uma obra na mesma pegada, com paredes de alvenaria erguidas dentro do espaço e depois esburacadas com marretas, num embate violento do corpo com o espaço –Veneza não verá um Brasil alegre.

RUPTURA

A escolha de Luiz Camillo Osorio para organizar a representação brasileira em Veneza marca uma quebra de tradição na Fundação Bienal de São Paulo, responsável pelo pavilhão do país. O normal é o curador da última edição da mostra paulistana selecionar os artistas do país em Veneza.

Caso fosse mantida a tradição, o curador teria de ser o britânico Charles Esche, que fez a última edição da Bienal, mas a fundação mudou as regras e escolheu Luiz Camillo Osorio, que trabalhou com Cauê Alves.


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