Folha de S. Paulo


Editor obcecado por Pessoa cria livraria de apenas um livro

Numa manhã de março passado, o tradutor norueguês Christian Kjelstrup, 40, editor de uma das maiores editoras da Noruega, a H. Aschehoug & Co, caminhava ao léu pelas ruas de Oslo quando teve uma ideia: a Livraria do Desassossego.

Não seria uma livraria comum, com endereço fixo e estantes entulhadas de autores de toda sorte de livros. O conceito seria outro, bem peculiar: um livro, um escritor, uma semana em cada lugar.

A livraria imaginada por Kjelstrup seria itinerante e venderia apenas o "Livro do Desassossego", obra de Fernando Pessoa que mais se aproxima do romance, apesar de não apresentar uma narrativa linear. Composta de fragmentos, é assinada pelo heterônimo Bernardo Soares.

"Vi uma placa de aluga-se' num pequeno estabelecimento e, naquele minuto, tive a ideia. Liguei na hora para a imobiliária e aluguei o espaço por uma semana", conta Kjelstrup, falando por Skype, de Oslo.

A Livraria do Desassossego foi um sucesso. No primeiro dia, vendeu 50 exemplares. No segundo, 240. No terceiro, 500. No final de uma semana, de 26 de março a 1º de abril, havia vendido 1.600 livros na língua local.

"Formaram-se filas na porta. As pessoas acreditaram em mim quando apareci na televisão dizendo que se tratava do melhor livro do mundo", diz. "Foi um ato ditatorial: impor Pessoa sobre tudo de ruim que abarrota as livrarias. Se você vai a uma livraria em Oslo e pede dicas de autores de língua portuguesa, vão te empurrar Paulo Coelho, eu garanto."

De março até agora, Kjelstrup rodou toda a Escandinávia, passando por lugares remotos, como a ilha de Svalbard, ao norte da Noruega, onde nem mesmo existe livraria. Em 2015, pretende visitar a América do Sul, incluindo o Brasil no roteiro (Companhia das Letras, 544 págs. R$ 48).

Divulgação
Christian Kjelstrup lê trechos do
Christian Kjelstrup lê trechos do "Livro do Desassossego" durante evento em julho em Lisboa

"Em Svalbard, há mais ursos polares do que habitantes. Mas todo mundo queria o seu exemplar do Livro do Desassossego'. Não sei exatamente quantos livros eu vendi lá, mas vendi todos que levei", comenta.

O ato mais ousado e arriscado foi, porém, vender Fernando Pessoa, em português, na terra de Fernando Pessoa. Em julho, durante o verão europeu, o norueguês aterrissou em Lisboa.

"Era como um brasileiro vir para a Noruega nos ensinar a esquiar. Eu me senti totalmente arrogante", diz. "A reação foi maravilhosa, para minha surpresa. Apareceram artistas locais para declamar Pessoa. Uma noite recebi um grupo de fadistas. Não vendi muito, 300 livros em cinco dias, mas foi uma experiência inesquecível."

Kjelstrup é um homem bem apessoado, com perdão do trocadilho. Alto, cabelos fartos, olhos claros, inglês perfeito, extrovertido, ele leu o "Livro do Desassossego" pela primeira vez em 1997, quando a obra foi traduzida para o norueguês. De lá para cá, nunca parou de ler o mesmo livro. Repetidamente.

"Tinha só 23 anos, fiquei louco. Minha primeira cópia está em pedaços, toda sublinhada", lembra. "Teve uma época em que eu batia de porta em porta oferecendo o Livro do Desassossego'. Este não é meu primeiro surto de Fernando Pessoa."


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