Folha de S. Paulo


Crítica: Obra labiríntica propõe questão para a qual não tem resposta

Osvaldo Campos deve escrever um ensaio sobre a pergunta "Quanto pesa uma alma?", no dia 31 de dezembro do ano 2000, às vésperas da virada do milênio.

Essa pergunta, na verdade, que o psicanalista responde relativizando-a e terminando o ensaio a tempo de ir à festa do Ano-Novo –onde sua vida mudará de rumo– é a pergunta do romance "Combateremos a Sombra", de Lídia Jorge, da editora Leya.

Numa trama labiríntica e precisamente minuciosa, vão se sucedendo ocorrências entre loucas e misteriosas, numa vertigem densa e requintada, em que a alma vai ficando cada vez mais pesada, sem que a pergunta possa ser respondida.

Campos é um psicanalista que acaba de descobrir que a mulher o trai com um de seus melhores amigos. Até aí, nada além do lugar-comum. Ele passa a viver em seu consultório e é aí, numa mistura de ninho e caverna, que começam a se seguir os pacientes bizarros e fascinantes que vão revelando a psique desse pesquisador de almas.

A impressão que o romance sugere é que, quanto mais Osvaldo Campos se enreda na vida de seus pacientes, quanto mais empatia ele sente por eles e pelo humano, mais fraco ele surge diante do leitor. O que parece entrega e certa inocência pode ser não mais do que outra face da covardia, e a famosa "contratransferência" da psicanálise pode também conter seus perigos.

O narrador desse enredo –que em alguns momentos chega ao rocambolesco– acompanha tudo com total controle, conhecimento e detalhe, mas sem neutralidade.

Percebe-se ironia, alguma crueldade com os personagens e, às vezes, escapa uma primeira pessoa, o que deixa tudo mais intrincado. É como se o narrador soubesse de algo que ainda não sabemos, numa trama que envolve dinheiro, sabotagem, paranoia e mentiras.

Combateremos a Sombra
Lídia Jorge
livro
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O sotaque português e a rotina do país tampouco são pano de fundo, mas parte integrante dos mistérios que envolvem o porto, navios, as ruas e seus habitantes: " E nós? (...) nos habituamos a viver miseravelmente, sem nos importarmos nem termos vergonha, e agora que outros nos sustentam, vivemos à sombra deles, dos válidos. Mendigos a viver à tripa-forra do produto da nossa mendicidade".

Para um romance escrito em 2007 é claro que a crise portuguesa já se anunciava.

São crises de várias naturezas, num romance que pesa como essa alma da questão para a qual Campos não tem resposta. Nós tampouco.

COMBATEREMOS A SOMBRA
AUTORA Lídia Jorge
EDITORA Leya
PREÇO R$ 54,90 (464 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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