Folha de S. Paulo


Ex-informante conduz longa sobre violência

Poucos dias após a Chacina de Vigário Geral (1993), em que 21 pessoas inocentes foram mortas no Rio de Janeiro, o então vice-governador Nilo Batista falou à imprensa sobre "sete fitas" que norteavam inquérito sobre o caso.

Nas gravações, disse Batista, uma testemunha prestava "o depoimento mais espantoso sobre a criminalidade interna das polícias".

Essa testemunha, um ex-informante da PM chamado Ivan, alegava conhecer de perto os autores da chacina. Agora, ele volta à cena, dando munição ao longa "À Queima Roupa", de Theresa Jessouroun, sobre a violência praticada nas favelas, premiado neste ano no Festival do Rio como melhor documentário e melhor direção de documentário.

Divulgação
O ex-informante da polícia Ivan, em imagem reproduzida do documentário ‘'À Queima Roupa'’, de Theresa Jessouroun
O ex-informante da polícia Ivan, em cena de 'À Queima Roupa', de Theresa Jessouroun

O filme mostra que o depoimento de Ivan tornou-se central nas investigações que apontaram 52 policiais como suspeitos. Seis foram condenados em um primeiro júri. Em um segundo julgamento, três foram absolvidos, e mais um foi condenado.

Ao possibilitar a aproximação com bastidores da polícia, Ivan torna-se "condutor da narrativa do filme", diz a diretora. Com mais esta exposição, receoso de seus "inimigos", ele pede para não ter o sobrenome revelado.

Com ajuda da diretora, a Folha localizou esse homem que, sabendo demais, entrou para o ainda embrionário programa de proteção à testemunha no país. Para falar à reportagem, ele sugeriu uma lanchonete na zona sul do Rio.

Hoje empregado, viúvo e com vida social malograda, Ivan não tira fotos e evita locais públicos. "Não ando à noite. Passo dois dias em casa e depois vou para um outro lugar, durmo em hotéis", conta. No filme, ele aparece na penumbra, com chapéu e a voz modificada digitalmente.

Por 18 anos, até 1993, ele se infiltrou "na boca" e confessa que ganhou "muito dinheiro" em operações que apreendiam drogas e armas. O mesmo material, diz, era revendido ilegalmente depois "para o próprio tráfico".

O ex-informante conta que não foi testemunha ocular da operação que resultou na chacina de Vigário Geral. "Acordei tarde naquele dia." Mas ele afirma que, no dia da chacina e no seguinte, encontrou-se com os autores do crime, que narraram tudo em detalhes. Para ele, a matança foi facilitada pelo hábito. "Matar tornou-se banal."

Pressionado pelos investigadores, passou a ser ele próprio alvo do grupo de extermínio do qual fez parte, conhecido pelo nome Cavalos Corredores.

"Entre a cruz e a espada", em troca de proteção, abriu o jogo. Pelos crimes que confessou ter cometido, passou 14 anos preso. Deixou a prisão em 2009.

300 CRIMES

Em um trecho do documentário, Ivan conta que cometeu 300 crimes durante sua trajetória de combate ao tráfico. O número não é preciso: ele se baliza por registros de ocorrência e processos na Justiça, conta à Folha.

Ao relembrar autuações forjadas e assassinatos por vingança praticados por ele próprio, Ivan interpreta diálogos inteiros: "Ivanzinho, eu botei sua bola de Cristal no concreto", profere, assumindo a voz de um traficante que teria torturado, matado e emparedado um garoto que lhe passava informações.

Ricos em detalhes, seus depoimentos também o traíram. "Se havia algo de verdade ali, ficava frágil com tantas contradições", diz o advogado Braz Fernando Sant'anna, que defendeu um condenado no caso, Alexandre Bicego Farinha, assassinado em 2007. "Como ele sabia de tudo o que aconteceu se não estava lá?", estranha.

Ivan se incriminaria em suas próprias mentiras? Para o chefe do inquérito sobre a chacina, coronel Valmir Brum, a palavra dele tinha "credibilidade máxima" no caso. "Tudo o que descreve vem com nome, horário, a forma que foi feito", diz Brum.

A defesa dos envolvidos, conclui o coronel, "sempre tentou desacreditar seu testemunho". Brum trabalhou na inteligência e na corregedoria da PM do Rio entre 1982 e 2009 e também depõe no documentário de Jessouroun.

'POLICIAL TAMBÉM SOFRE VIOLÊNCIA'

A Polícia Militar se tornou "o bode expiatório de muitas de suas ações", diz o coronel Antônio Carballo, diretor de Ensino e Instrução da PM do RJ.

Ele assistiu "À Queima Roupa" três vezes e recomenda o filme, mas diz que policial também sofre violência e que "a força motriz do crime está também no sistema de Justiça e de segurança pública do país".

Segundo Carballo, a "esmagadora maioria" dos cerca de 55 mil PMs do RJ não compactua com o comportamento retratado, e desvios de conduta são punidos com expulsão.


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