Folha de S. Paulo


Leia peça de Mário Viana 'Vidas Secas Reloaded', sobre estiagem em SP

Shopping center moderno, muitos metais, espelhos, mármore. Uma fila imensa ocupa o corredor dos sanitários. Vitória, 35 anos, está sentada, abanando-se com uma revista semanal. Perto dela, Menino, 10 anos, tenta brincar com uma cachorrinha branca bastante desanimada. Fabiano, 40, vem da fila, carregando duas garrafas PET cheias de água.

V: Que demora!

F: Viu o tamanho da fila? Quase não me deixaram encher a segunda garrafa.

V: Encheu?

F: Toda no bebedouro, não. Tive de completar na torneira do banheiro.

V: (Com asco) Ai, Fabiano!

F: Em casa, ferve e pronto. Pior que nós vamos ter que mudar de shopping. O segurança falou que eles vão começar a cobrar pra usar o bebedouro.

V: O JK e o Vila Olímpia já tão cobrando. Se a moda pega...

F: Vou ter que vender teu carro pra pagar a água.

V: Pelo preço que tá a água no mercado, vai mesmo. (Suspira) A gente devia ter ido pra Miami!

F: Você teimou em carregar o moleque! Não deram visto pra ele e a viagem dançou.

V: Você ia ter coragem de abandonar nosso filho nesse deserto?

F: Era Miami, Vitória!

V: Minha mãe disse que não tem mais idade pra ser babá de neto.

F: Velha inútil. Vam'bora, menino!

M: Pai, dá um pouco d'água.

F: Aqui, não!

M: (Manhoso) Dá!

V: Tem Coca-Cola, filhinho.

M: Quero água!

F: Menino mimado!

De má vontade, Fabiano abre a garrafa e a aproxima de Menino.

M: Não é pra mim, não. É pra Ariel.

Menino aproxima a cachorrinha da garrafa, Fabiano recua indignado.

F: Não fiquei duas horas na fila da água pra molhar a goela dum poodle besta.

V: Ela não é besta, nem poodle. É uma bichon frisé muito fofa.

M: Ela tá tão molinha!

V: É sede.

F: Leva ela no banheiro, ainda tem água nos vasos.

V: Fabiano!

F: Pra poodle, tá bom demais.

V: Bichon frisé!

M: Mãe, a Ariel tá esquisita!

Aproximam-se do cão, que agoniza. Menino chora.

M: A Ariel tá morrendo!

F: Para de chorar, moleque. Tá todo mundo olhando.

V: A pobrezinha tá com sede, Fabiano.

Fabiano olha o cão, segura a garrafa e faz um carinho sem jeito no filho.

F: A Ariel vai ser muito feliz no céu dos cachorrinhos.

Menino chora mais alto.

F: Toma um golinho de água, filho.

M: Não quero!

Menino dá um tapa na garrafa PET, que voa das mãos de Fabiano e cai a alguma distância, aberta. A água escapa. Vitória dá um grito desesperado e corre para a garrafa.

V: Nããão!

F: Justo a de água filtrada!

Menino chora abraçado ao cão, Vitória agarra a garrafa quase vazia. Dois seguranças se aproximam da família, enquanto a faxineira vem com o pano de chão.


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