Folha de S. Paulo


Bienal em Nova Orleans põe Tarsila do Amaral em diálogo com Paul Gauguin

Na cidade que já foi considerada o ponto mais ao norte do Caribe, Tarsila do Amaral e Paul Gauguin se encontram agora. Telas da modernista brasileira e do impressionista francês estão juntas na Prospect.3, a bienal de arte contemporânea de Nova Orleans, como âncora conceitual de uma exposição que tenta rever relações raciais à luz de assuntos como escravidão, discriminação e identidade étnica.

Em sua terceira edição, a mostra que se espalha por toda a cidade do sul dos Estados Unidos traça um paralelo entre a fase da obra de Amaral em que ela viajou ao Rio, ao interior paulista e a Minas Gerais em busca das cores de um Brasil autêntico e as primeiras pinturas de Gauguin no Taiti, ilha da Polinésia Francesa, em que saiu à procura de um primitivismo capaz de curar a alienação causada pela revolução industrial então em pleno vapor.

"Enquanto Gauguin tentou entender a si mesmo a partir da observação dos outros, a obra da Tarsila é também uma tentativa de definir o indefinível, estabelecer a identidade brasileira nos anos 1920, o que tem a ver com a ideia de antropofagia", diz Franklin Sirmans, curador da mostra, em entrevista à Folha. "É preciso devorarmos uns aos outros para que nos entendamos."

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Obra de Tarsila do Amaral, que estará na mostra Prospect New Orleans, em Nova Orleans, nos Estados Unidos
Obra de Tarsila do Amaral, que estará na mostra Prospect New Orleans

Nesse sentido, um esboço de "A Negra", de Amaral, ganha ressonância maior ao lado de uma tela de Gauguin em que retratou duas mulheres no Taiti. Se a brasileira, mesmo que sem a disciplina etnográfica dos artistas europeus, transforma sua ama de leite em arquétipo nacional, o francês idolatra o primitivismo na tentativa de desancar os avanços da revolução industrial, que então transformava Paris.

Na obra dos dois artistas, a paleta se desprende da realidade, com tons tão sedutores quanto surreais. Gauguin, que também havia desenvolvido uma técnica para criar vitrais coloridos, pensava em cores pela proximidade, ou seja, um tom influencia outro adjacente, fazendo suas composições reverberarem com um leque poderoso de cores.

Isso também acontece na obra de Amaral, que contou em seu diário ter encontrado em Minas cores como "azul puríssimo", "rosa violáceo", "amarelo vivo" e "verde cantante". Essa paleta alucinada, senão deslumbrada, tanto de Amaral quanto de Gauguin, também parece ter lastro na tentativa de desmistificar relações raciais.

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Obra de Paul Gauguin, que estará na mostra Prospect New Orleans, em Nova Orleans, nos Estados Unidos
Obra de Paul Gauguin, que estará na mostra Prospect New Orleans

Além de um esboço da "Negra", de Amaral, está na mostra em Nova Orleans outra tela da artista. Em "Anjos", ela retrata crianças vestidas como figuras religiosas numa procissão, quase todas elas mulatas. Gauguin, influenciado pela arte africana, dava a mesma ênfase às cores exuberantes de seus personagens no Taiti, que podiam assumir qualquer tom, mas quase nunca o branco.

Nesse ponto, Amaral e Gauguin também travam um diálogo com a obra de Jean-Michel Basquiat, grafiteiro negro que foi um dos maiores nomes da arte pop dos Estados Unidos, que também tem na mostra uma obra que trata de questões raciais.

Isso tudo porque Nova Orleans é um lugar marcado pelo tema. "Era uma grande cidade portuária e foi o coração do comércio de escravos nos Estados Unidos", diz Sirmans. "Essa é uma herança palpável até hoje. Da mesma forma que a obra da Tarsila tem raízes na Europa e no Brasil, o sul foi uma inspiração para o Basquiat."

Sua tela "Undiscovered Genius of the Mississippi Delta", na opinião de Sirmans, também fala de escravidão e colonialismo ao retratar o rio que divide os Estados Unidos e serviu de pano de fundo dos conflitos entre escravocratas e abolicionistas.


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