Folha de S. Paulo


Adaptação de Dostoiévski tem atores narradores e cenário de arte abstrata

Diversos feixes de luz incidem sobre o romance "Os Irmãos Karamázov", de Fiódor Dostoiévski, na adaptação teatral "Karamázov", que estreia neste sábado (1º).

O primeiro ilumina o trabalho do encenador Ruy Cortez e dos dramaturgos Luís Alberto de Abreu e Calixto de Inhamuns, que se lançaram no desafio de transpor para o palco as cerca de mil páginas do livro monumental, uma das obras-primas do autor russo.

O resultado é a trilogia "Karamázov", composta por "Uma Anedota Suja", "Os Irmãos" e "Os Meninos", três peças tão complementares como independentes.

As páginas do livro são evocadas no cenário, que sugere um constante folhear de páginas, inspirado na obra de Kazimir Malevich (1878-1935), mestre da arte abstrata nascido na Ucrânia.

Atores manuseiam o cenário feito de lâminas de lonas sobrepostas, como se fossem folhas de papel de diversos formatos e cores.

Os atores, ao mesmo tempo em que dramatizam, recitam passagens do romance e assumem também a função de narradores em cena. A linguagem predominantemente narrativa do espetáculo reafirma a presença marcante do romance no palco.

"Minha preocupação foi fazer da palavra de Dostoiévski o núcleo de tudo, para que ela pudesse se tornar plena", afirma Cortez.

Luís Alberto de Abreu conta que trechos inteiros do original foram aproveitados na versão teatral. "Por meio da linguagem narrativa, pudemos permanecer fiéis à poética do autor", diz o dramaturgo.

IMAGINAÇÃO

Talvez por Dostoiévski (1821-1881) ser um dos grandes retratistas do humano, limitar-se ao recurso dramático não daria conta da versão cênica do material. A narração dos atores surge, assim, como linguagem capaz de retratar o romance de modo fidedigno. De quebra, instiga a imaginação da plateia.

Em "Karamázov", o espectador desempenha um papel similar ao do leitor. Como tal, é um cocriador da obra, solicitado para completar a história dentro de sua mente.

A arte não figurativa de Malevich, evocada em cena, reafirma o desejo de Cortez de fazer de sua trilogia um espetáculo aberto, em que o público dá a forma final à trama.

MODERNIDADE

O romance acompanha a família de Fiódor Pávlovitch Karamázov, homem inescrupuloso que enriquece graças à herança de dois casamentos. Ele será assassinado por um de seus quatro filhos: o místico Aliócha, o intelectual Ivan, o lascivo Dmitri, ou o bastardo Smerdiakóv.

Juntos, eles sintetizam visões múltiplas de uma sociedade niilista e materialista.

Para Ruy Cortez, esses personagens espelham o homem moderno. "Dostoiévski foi um profeta da modernidade. Esse grande romance é uma síntese de suas ideias", diz.

Abreu concorda. Para o dramaturgo, os cinco Karamázov, com seu comportamento cruel e apaixonado, "representam não apenas o povo russo, mas o ser humano como um todo".

KARAMÁZOV
QUANDO sáb., a partir das 20h, dom., a partir das 17h, e seg., a partir das 19h; até 15/12
ONDE SP Escola de Teatro, pça Roosevelt, 210, tel. (11) 3775-8600
QUANTO de R$ 10 a R$ 20
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

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SANGUE RUSSO

Fiódor Pávlovitch Karamázov
O patriarca da família se define como um palhaço e bufão mentiroso. Acumula posses graças à herança adquirida em dois casamentos. Espelha uma aristocracia decadente e ocidentalista.

Dmitri Karamázov
Primogênito, é orgulhoso, lascivo e romântico. Vive uma disputa dupla com o pai. Quer receber parte da herança deixada pela mãe e conquistar o amor de Grúchenka, mulher também desejada pelo velho Fiódor.

Smerdiakóv Karamázov
Filho bastardo, fruto de um abuso sexual de Fiódor contra uma mulher indigente. Além de epilético, é misterioso, orgulhoso e inteligente, apesar de inculto. Deseja vingar-se do pai.

Ivan Karamázov
O intelectual da família. Age conforme a razão e seus ideais niilistas. Busca romper com todos os valores morais do homem.

Aliócha Karamázov
Puro e místico, busca a dissolução do eu. Suas ações têm como propósito a intermediação entre os irmãos.

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KARAMÁZOV OU KARAMAZÓV?

Dúvidas sobre a pronúncia em português do clássico de Dostoiévski acompanham a história das traduções. No Brasil, o título já foi grafado sem acento algum e era pronunciado com a tônica no "o" (Karamazóv). E até mesmo com "f" no final (Karamazoff), em edição dos anos 1930.

A grafia Karamázov tornou-se consenso em 2008, com a versão da Editora 34. A tradução de Paulo Bezerra, seguindo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, levou prêmio da APCA.


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