Folha de S. Paulo


Grupo pede abolição final do inferno ao Vaticano

Nesta quarta (3), o filósofo italiano Franco Berardi entrega no Vaticano uma petição solicitando nada menos que o fim da danação eterna. A carta faz parte da ação do coletivo de ativistas argentino Etcétera, um dos projetos da 31ª Bienal de São Paulo, que começa no sábado (6).

"Nós, cidadãos do mundo, reunidos na cidade de São Paulo, (...) rezamos pela abolição final do Inferno, lugar de barbárie, fonte mental de ódio e violência", diz o texto. (Leia abaixo)

Não é por acaso que a carta será entregue no dia 3 de setembro. Essa é a data do nascimento do artista argentino León Ferrari (1920-2013) que, em 1998, criou o Clube de Ímpios, Hereges, Apóstatas, Blasfemos, Ateus, Pagãos, Agnósticos e Infiéis (também conhecido pelas iniciais Cihabapai) e enviou uma petição ao papa João Paulo 2º nos mesmos termos.

RESPOSTA

O Vaticano chegou a responder à primeira solicitação, negando o pedido, segundo Loreto Garín Guzmán e Federico Zukerfeld, ambos do grupo Etcétera.

"Nós fomos convidados pelos curadores da Bienal a realizar um trabalho em colaboração com o León e, como o papa Francisco é um conhecido dele, achamos que faria todo sentido", diz Zukerfeld.

De fato, em 2004, quando de uma retrospectiva de Ferrari em Buenos Aires, o então cardeal Jorge Bergoglio (hoje Francisco) divulgou uma carta afirmando que a mostra era "blasfema", logo após fiéis católicos terem destruído algumas peças da mostra.

Uma delas, a imagem de uma santa coberta de baratas, está em exposição na Bienal em São Paulo.

"Por conta disso, o León se tornou mundialmente conhecido e, quando recebeu o Leão de Ouro, em Veneza, em 2007, dedicou o prêmio ao cardeal Bergoglio", diz Garín.

A petição será entregue na Europa na quarta-feira, mas os visitantes da Bienal poderão assinar a carta durante a mostra no espaço organizado pelo Etcétera.

Além de apresentar obras de Ferrari, eles criaram, com Franco Berardi, uma instalação interativa, "Errar de Deus", escrita assim mesmo, com "errar" como verbo e substantivo.

Ela é baseada no livro "Palabras Ajenas", publicado por Ferrari, em 1967, uma espécie de roteiro que o próprio artista sugeria ser encenado.

Criado em 1997, o Etcétera é conhecido por ações que já alcançaram grande repercussão pública na Argentina.

Em 2002, por exemplo, o grupo promoveu um "Mierdazo", levando dezenas de pessoas a jogarem sacos com cocô no Congresso Nacional, como protesto frente a um dos mais crônicos momentos de crise no país.

O grupo de ativistas também criou o movimento "Errorista Internacional", uma prática que fundamenta sua ação no erro.

PEDIDO FINAL

"Quando o Bergoglio foi eleito, ficamos preocupados em como Léon veria isso e ligamos para sua família. Eles nos contaram que ele estava ótimo, tinha bebido champanhe e fumado um charuto para comemorar", conta Federico Zukerfeld.

A petição que segue na quarta tem um item dedicado ao artista morto no ano passado: "Caso a negociação entre Sua Santidade e o Pai Eterno dê conta da impossibilidade da anulação do Inferno, rogamos-lhe ao menos permitir a redenção da alma do artista e sua libertação das trevas".

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PETIÇÃO AO PAPA FRANCISCO PELA ABOLIÇÃO FINAL DO INFERNO

São Paulo, Brasil, 3 Setembro 2014.
Santa Sé, Vaticano, Sua Santidade, o Papa Francisco.

Em 1998, o artista argentino León Ferrari (1920-2013) enviou uma petição em nome do Clube de Ímpios, Hereges, Apóstatas, Blasfemos, Ateus, Pagãos, Agnósticos e Infiéis (CIHABAPAI)1 ao representante de Deus na terra, papa da Igreja Católica Apostólica Romana João Paulo II, solicitando a abolição do Inferno, lugar de infindável tortura e sofrimento, ao qual é destinada a maioria da humanidade. A Santa Sé no Vaticano negou-se a aceitar a petição, argumentando que não se pode anular o Inferno. O lugar do sofrimento eterno, sendo eterno, continuará existindo (ou não?).

Em dezembro de 2001, enquanto os demônios financeiros se manifestavam na Argentina, Ferrari escreveu uma segunda carta a João Paulo II, reiterando a petição, outra vez sem sucesso. Infelizmente, o sadismo católico não se curvou: a tortura eterna continuou sendo praticada nesse lugar oculto chamado Inferno, e também nas madrigueiras escondidas do inconsciente social, alimentando o terror e a violência.

Em 2013, León Ferrari estava se preparando para sua elevação final da vida terrena, quando Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, amigo-inimigo do artista, subiu à Cátedra de Pedro, com o nome de Francisco I. Pouco antes de seu último suspiro, o grande artista argentino pediu uma taça de um bom vinho tinto e brindou à ascensão de Bergoglio.

Estaria enfim ocorrendo o milagre?

Ao fim de sua primeira Via-Sacra, o Papa Francisco declarou que Deus não condena ninguém, e enunciou também outras palavras2 que pareceram significar que o Inferno, do qual tanto se fala, não existe.

No mediascape global -verdadeiro lugar infernal- desencadeou-se um debate feroz entre aqueles que interpretavam as palavras do Papa como o fim do eterno tormento e aqueles que contrariamente argumentavam que as palavras do sumo pontífice eram apenas metafóricas e que não se pode duvidar do tormento eterno.

Nós, cidadãos do mundo, reunidos na cidade de São Paulo, pedimos ao Papa Francisco que elucide esse ponto crucial e mais precisamente rezamos pela abolição final do Inferno, lugar de barbárie, fonte mental de ódio e violência.

Recordamos aqui a Laetitia de Francisco de Assis, quando ele se encontrava próximo à "irmã Morte", e esperamos que todos os homens e mulheres do mundo possam ser livres de enfrentá-la com o mesmo espírito.

Além disso, pedimos ao Papa Francisco que nos ajude a anular o Inferno terreno do Capitalismo Financeiro e da guerra, do qual têm experiência cotidiana bilhões de seres, indígenas, trabalhadores, pobres, desempregados,
vítimas da guerra e do colonialismo clerical.

MEDIANTE ESTA PETIÇÃO, NÓS ABAIXO-ASSINADOS SOLICITAMOS A TOTAL E DEFINITIVA ABOLIÇÃO DO INFERNO.

Nota: Caso a negociação entre Sua Santidade e o Pai Eterno dê conta da impossibilidade da anulação do Inferno, rogamos-lhe ao menos permitir a redenção da alma do artista e sua libertação das trevas.

PRIMERA CARTA

Buenos Aires, 24 de diciembre de 1997
Juan Pablo II, El Vaticano

De nuestra consideración:

Se acerca el fin del milenio. Se acerca, posiblemente, el Apocalipsis y el Juicio Final. Si es cierto que son pocos los que se salvan, como advierte el Evangelio, se acerca para la mayor parte de la humanidad el comienzo de un infierno inacabable.

Para evitarlo basta volver a la justicia que Dios Padre dictó en el Génesis. Si El castigó la desobediencia de Eva suprimiendo nuestra inmortalidad, no es justo que el Hijo nos la haya restituido, tantos siglos después, prolongando padeceres.

Si una parte de la Trinidad dicta una sentencia cuya pena termina y se completa con la muerte, no puede otra parte abrir cada causa, agregar otra sentencia, resucitar el cadáver y aplicar un castigo adicional que repite infinitas veces el castigo ya cumplido por el pecador una vez muerto. La justicia del Hijo contradice y viola la del Padre.

La existencia del Paraíso no justifica la del Infierno: la bondad de los pocos salvados no les permitirá ser felices sabiendo eternamente que novias o hermanas o madres o amigos y también desconocidos y enemigos (prójimo que Jesús nos ordena amar y perdonar) sufren en tierras de Satanás.

Le solicitamos entonces volver al Pentateuco y tramitar la anulación del Juicio Final y de la inmortalidad.

Lo saludamos atentamente

CIHABAPAI - Club de Impíos Herejes Apóstatas Blasfemos Ateos Paganos Agnósticos e Infieles en formación)

SEGUNDA CARTA

Diciembre del 2000, Buenos Aires.
Juan Pablo II, El Vaticano,

De nuestra consideración:

En su artículo quinto, la Declaración Universal de Derechos Humanos (1948) dice: "Nadie será sometido a torturas ni a penas o tratos crueles, inhumanos o degradantes". Y el artículo primero de la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes (1984) califica como tortura todo acto por el cual se inflija intencionalmente a una persona dolores o sufrimientos graves, ya sean físicos o mentales, con el fin de obtener de ella o de un tercero, información, o una confesión, o de castigarla por un acto que haya cometido, y agrega: "Todo Estado castigará esos delitos con penas adecuadas".

La última edición del Catecismo de la Iglesia Católica (1998) comparte la condena: "La tortura, que usa de violencia física o moral para arrancar confesiones, para castigar a los culpables, intimidar a los que se oponen, satisfacer el odio, es contraria al respeto y a la dignidad humana" (n. 2297). Sin embargo, el mismo Catecismo admite los suplicios: "La enseñanza de la Iglesia afirma la existencia del infierno y su eternidad. Las almas de los que mueren en estado de pecado mortal descienden a los infiernos inmediatamente después de la muerte y allí sufren las penas del infierno, el fuego eterno" (n. 1035).

Al sufrimiento de las almas, el Catecismo suma el de los cuerpos: la resurrección de todos los muertos, "de los justos y de los pecadores" (Hechos 24, 15), que precederá al Juicio Final, "será la hora en que todos los que estén en los sepulcros oirán su voz y los que hayan hecho bien, resucitarán para la vida, y los que hayan hecho el mal, para la condenación" (Juan 5, 28-29)... "e irán éstos a un castigo eterno y los justos a una vida eterna" (Mateo 25, 31.32.46) (n. 1038).

Se materialice o no el sufrimiento anunciado por Jesús, y corresponda o no juzgarlo con nuestras leyes, el miedo de los creyentes al futuro suplicio es ya un suplicio: un sufrimiento mental que nuestras leyes y el Catecismo prohíben.

Frente a estas convicciones de la Iglesia, que rechaza la tortura en vida y la admite en almas de muertos y cuerpos de resucitados, y alarmados por la declaración vaticana de que el infierno existe, es eterno y está lleno de malvados, le solicitamos:

a) que extienda al más allá el repudio a la tortura proclamado en el Catecismo;

b) que gestione se respeten los derechos humanos de la multitud de almas que están sufriendo, algunos desde el Gólgota, en tierras de Satanás.

c) Terminar con padecimientos de millones, desalojar y demoler el infierno, tranquilizar a los creyentes, puede hacer realidad su esperanza de que la Iglesia pasará a la historia como la defensora del hombre.

Lo saluda muy atentamente,

CIHABAPAI - Club de Impíos Herejes Apóstatas Blasfemos Ateos Paganos Agnósticos e Infieles en formación

1. O CIHABAPAI, sempre em formação, foi fundado por León Ferrari.
2. Em janeiro de 2014, divulgou-se uma suposta mensagem do papa Francisco sobre o Inferno: "(...) A Igreja já não crê em um Inferno literal, onde as pessoas sofrem. Essa doutrina é incompatível com o amor infinito de Deus. Deus não é um juiz, mas um amigo e um amante da humanidade. Deus busca não para condenar, mas para abraçar. Assim como na fábula de Adão e Eva, vemos o Inferno como um recurso literário. O Inferno não passa de uma metáfora da alma isolada, que assim como todas as almas, em última instância, está unida em amor com Deus". A veracidade dessas declarações permanece em dúvida, entretanto, essa mensagem foi desmentida por fontes do próprio Vaticano.


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