Folha de S. Paulo


Mostra resgata o melhor da obra política do Videobrasil

"Já ficaram brancos os cabelos de mamãe. E meus irmãos choraram todas as suas lágrimas", diz o artista chinês Liu Wei, tentando medir em seu vídeo a pedregosa passagem do tempo desde o massacre da praça da Paz Celestial, em Pequim, há 25 anos.

Um imigrante argelino conta à artista marroquina Bouchra Khalili como gastou os primeiros euros ao pisar na Itália —um banho, algo para comer, um maço de cigarros e já não sobrou nada.

Essas medidas de tempo e espaço dimensionam conflitos políticos e sociais em escala humana, ou seja, narram do ponto de vista da micro-história os abalos tamanho macro do mundo real. E dão o tom de obras clássicas de 30 anos do festival Videobrasil.

"Memórias Inapagáveis", mostra no Sesc Pompeia, parece rever o que de mais contundente já passou pelo maior evento de videoarte do país, responsável por firmar essa linguagem na arte contemporânea brasileira.

Divulgação
Performance 'O Samba do Crioulo Doido', de Luiz de Abreu, que está na mostra 'Memórias Inapagáveis'
Performance 'O Samba do Crioulo Doido', de Luiz de Abreu, que está na mostra 'Memórias Inapagáveis'

"É olhar não só para os acontecimentos históricos, mas entender como os afetos moldam essas narrativas", diz o espanhol Agustín Pérez-Rubio, curador da mostra. "Essas obras refletem como cada artista assume aquela realidade que presenciou."

Ou inventa uma realidade possível. Rosângela Rennó cria o que seria um documentário do descobrimento do Brasil, um filme cego e mudo, em que se veem só oscilações de luz sobre película envelhecida e legendas com trechos da carta de Pero Vaz de Caminha.

Do ponto de vista formal, essa é uma das obras mais poderosas da exposição, já que transforma a superfície do vídeo em pura presença física, um monocromo branco que traveste com neutralidade enganosa o momento histórico marcado pela brutalidade.

Jonathas de Andrade também usa a ficção como chave de leitura de conflitos reais.

Numa animação artesanal, filmada quadro a quadro com cenários de papel, o artista arquiteta um terremoto tão violento que faz o Chile se desprender do continente sul-americano, criando uma nova costa no Pacífico para Argentina e Bolívia, que perdera seu acesso ao mar numa guerra com o país vizinho.

Nesse sentido, as obras que já passaram pelo Videobrasil reforçam a pegada geopolítica do festival, que sempre voltou os olhos para o chamado sul global, ou seja, não só países no sul do mundo, mas todos aqueles em posição periférica ou que travam disputas com poderes hegemônicos.

Um retrato dessas relações está no trabalho de Bouchra Khalili. Em quatro vídeos, a artista pede que imigrantes do norte da África desenhem no mapa as rotas que fizeram para adentrar a Europa.

Nada aparece na tela a não ser os rabiscos sobre os atlas. São linhas pontilhadas e traços às vezes erráticos que lembram feridas abertas ao longo das rotas. O som é sempre um relato do perigo narrado com voz seca e firme.

FERRAMENTA POLÍTICA

Essa natureza do vídeo como ferramenta de testemunho direto e sem filtros ainda serve de base conceitual para muitos trabalhos, mesmo em tempos marcados pela banalização de efeitos especiais.

"Desde o feminismo, a era black power e a ascensão dos estudos de gênero, o vídeo tem sido uma ferramenta política", diz Pérez-Rubio. "É uma linguagem que já surge defendendo um posicionamento político mais radical."

Isso está no quase documentário de Liu Wei, que narra a era pós-massacre da praça da Paz Celestial em Pequim usando imagens de parentes e amigos que morreram nos confrontos com a polícia.

E também surge na obra do sul-africano Dan Halter, que alterna cenas de raves no Reino Unido e imagens de protestos por toda a África ao som de um hit pop de Rozalla, uma cantora do Zimbábue.

Sua obra subverte a linguagem do videoclipe oitentista, de cortes rápidos e movimentos de câmera exagerados, para embaralhar visões de dor e hedonismo, um turbilhão de imagens construído de forma milimétrica para ser um retrato —amargo— da vida.

MEMÓRIAS INAPAGÁVEIS
QUANDO abre neste sábado (30), às 19h; de ter. a sex., das 10h às 21h; sáb. e dom., das 10h às 19h; até 30/11
ONDE Sesc Pompeia, r. Clélia, 93, tel. (11) 3871-7700
QUANTO grátis


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