Folha de S. Paulo


Museu se dedica a objetos mórbidos

A maioria de nós só se detém para ver a morte quando a morte vem ao nosso encontro. Mas o novo Morbid Anatomy Museum (Museu de Anatomia Mórbida), inaugurado recentemente no Brooklyn, deu uma festa animada de boas-vindas à morte.

A missão do museu é profundamente séria, segundo sua diretora criativa, Joanna Ebenstein: exibir aspectos da cultura que talvez preferíssemos minimizar, vendo-os como mórbidos ou marginais. "Quero que as pessoas entrem aqui e digam: 'Uau, isto é realmente interessante. Por que não sabemos disso? O que nosso desconhecimento revela sobre nós?'."

O museu, sem fins lucrativos, surgiu a partir da Biblioteca de Anatomia Mórbida, a coleção particular de Ebenstein de mais de 2.000 livros sobre história médica, rituais de morte, corpo humano e temas esotéricos. A biblioteca deu lugar a um salão literário intelectual que reúne artistas, escritores, curadores e amadores dedicados ao que Ebenstein descreve como "as coisas que escapam pelas frestas" do convencional. A exposição inaugural, "A Arte do Luto", inclui mais de 90 objetos que no passado poderiam ter sido expostos em qualquer estabelecimento funerário respeitável.

Tony Cenicola - 24.jun.2014/The New York Times
Pinturas em exibição no Morbid Anatomy Museum, em Nova York, em foto de junho
Pinturas em exibição no Morbid Anatomy Museum, em Nova York, em foto de junho

As visitas aos espaços particulares de três colecionadores, todos os quais contribuíram para a exposição, revelam objetos que vão desde o científico até o poético, passando pelo prático.
"As coleções particulares às vezes 'falam' de uma maneira que os museus não podem", Ebenstein comentou. "Parte da diversão de ser curadora é poder mergulhar nas coleções das pessoas e ver o que elas possuem."

Numa casa de Manhattan, o Arquivo Burns contém mais de 1 milhão de imagens de história médica e do "lado mais tenebroso da vida", nas palavras do criador do arquivo, o médico Stanley Burns. Elas estão guardadas em gavetas e armários, além de cobrir todas as paredes, incluindo a do banheiro. Os mais de 40 livros de Burns incluem "Sleeping Beauty" (1990), seu inovador estudo da fotografia memorial do século 19, um gênero que hoje está quase esquecido. "Eu me interesso por fotos de coisas que nunca aconteceram", disse ele, "os aspectos perdidos da história, aqueles que queremos esquecer."

Nesse aspecto, ele identifica uma semelhança entre sua coleção e a do Morbid Anatomy, que inclui em sua exposição inaugural mais de 80 imagens do Arquivo Burns. Burns parou diante de uma tela a óleo sobre luto mostrando uma criança segurando um ramalhete de miosótis, flor associada à recordação dos mortos. "Isso é mórbido?" indagou. "É uma maneira de olhar a vida."

Evan Michelson, dono da Obscura Antiques and Oddities, em Manhattan, e estudioso residente do Morbid Anatomy, costuma repetir uma frase de Emily Dickinson: "A natureza é uma casa mal-assombrada, mas a Arte é uma casa que quer ser assombrada".

Sua coleção Second Empire Victorian (Vitorianos do Segundo Império), em Plainfield, Nova Jersey, é repleta de coisas mortas, mas seus fantasmas mais mesmerizadores nunca chegaram a estar vivos: são manequins de cera de lojas de departamento do início do século 20, com olhares estranhamente naturais.

Um dia, uma amiga mútua levou Ebenstein para ver sua coleção. "Compartilhamos essa ideia da importância do estudioso externo", disse Michelson.

Percorrendo a casa na companhia de Michelson (que é coapresentadora do reality show "Oddities", do Science Channel), ouvimos explicações sobre a história das exposições de curiosidades, sobre os tipos de arames usados na taxidermia vitoriana e sobre as origens psicológicas do desejo de preservar matéria orgânica sob uma capa de vidro.

Tony Cenicola - 4.jun.2014/The New York Times
Uma raposa empalhada e um ornamento feito com cabelo humano, no Morbid Anatomy Museum
Uma raposa empalhada e um ornamento feito com cabelo humano, no Morbid Anatomy Museum

"Apenas os humanos fazem isso", comentou Michelson. "É como se tivéssemos caído fora do tempo. Temos um desejo de conservar as coisas."

A sala de estar de Karen Bachmann, no Brooklyn, parece com a de muitas outras famílias com crianças pequenas -até que você nota o esqueleto de um pé humano sobre uma parede. "Antigamente eu o usava no cabelo quando ia à escola de arte", disse.

Designer de joias, Bachmann recorda que, quando estudou no Instituto Pratt, em Nova York, ela fez colares de corações de galinha e esculturas com órgãos de animais em saquinhos plásticos presos a corseletes. "Um professor disse que meu trabalho era grotesco", recordou. "Fiquei ofendida, mas depois resolvi interpretar aquilo como elogio."

Bachmann está criando um objeto para o acervo permanente do Morbid Anatomy: um relicário de latão em homenagem ao primeiro dos estudiosos visitantes mensais do museu, o historiador médico britânico (ainda vivo) Richard Barnett. O relicário vai incluir mechas de seus cabelos, algumas cartilagens que restaram de uma cirurgia de joelho e gaze restante de uma apendicectomia. "Todo mundo deve deixar para trás alguma coisa de si", disse Bachmann. "Ele só deixou um pouco a mais."


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