Folha de S. Paulo


Festival de clássicos restaurados exibe 'dinossauros fabulosos' na Itália

"Já somos, talvez, uns dinossauros", declarou outro dia o cineasta francês Laurent Cantet ("Entre os Muros da Escola") ao jornal "El País". Sim, os diretores e escritores, os que veem, pensam e sonham cinema, talvez sejam desde já os dinossauros do século 21, esmagados pela TV, pelos games e pela internet.

Mas, como no teatro e na ópera, sabemos desde Steven Spielberg que dinossauros ressuscitam. Daí talvez o sucesso cada vez maior do festival Il Cinema Ritrovato, que este ano chega a 28ª edição em Bolonha, Itália.

O evento apresenta apenas filmes restaurados e, como estamos em 2014, nada mais previsível do que o Ritrovato (ou seja: reencontrado) colocar em relevo o centenário de Carlitos.

Com efeito, já há anos a Cinemateca de Bolonha mantém um programa de restauro de raridades de Charles Chaplin (1889-1977). Este ano passa uma bateria delas, assim como filmes ligados ao surgimento do personagem —sobretudo os do francês Max Linder (1883-1925), inspirador de Carlitos.

Divulgação
Charles Chaplin em cena do curta 'Corrida de Automóveis para Meninos', de 1914
Charles Chaplin em cena do curta 'Corrida de Automóveis para Meninos', de 1914

Claro, o festival não fica nisso. "Juventude Transviada" (1955) abriu, na exibição noturna de sábado (28) na Piazza Maggiore, a série de três filmes feitos por James Dean (1931-1955). Os outros dois: "Vidas Amargas" (1955) e "Assim Caminha a Humanidade" (1956) passam durante esta semana.

O grande destaque europeu deste ano com uma reetrospectiva é o italiano Riccardo Freda (1909-1999). Cineasta de gêneros (aventura, épico, terror), Freda acabou esmagado pelo cinema engajado dos anos 1950 e 1960.

Era um tempo em que o cinema italiano sabia conciliar como ninguém belos seios e boas causas. Freda não estava nessa. Ao menos não lhe interessavam as causas, apenas o cinema: um sentido único do ritmo, da eficácia, da beleza, da beleza por vezes buscada no horror, são marcas preciosas a reencontrar em sua retrospectiva, na qual um dos filmes será apresentado pela inglesa Barbara Steele ("8½"), rainha do filme de terror.

Ainda em matéria de Europa, a retrospectiva dos países do leste deste ano diz focará na Polônia —no ano passado tivemos os tchecos, com o anárquico, fabuloso "As Pequenas Margaridas" (1966), de Vera Chytilová.

Desta vez serão os poloneses. Havia talentos por lá. Sobreviveu o Andrej Wajda de "Samson, a Força Contra o Ódio" (1961) e "Cinzas e Diamantes" (1958), entre outros. Sobreviveu o bastante para trazer à luz, ainda hoje, a verdade do domínio soviético sobre seu país. Agora podemos rever os filmes poloneses de outra perspectiva, inclusive o belíssimo "Faraó" (1966), de Jerzy Kawalerowicz (1922-2007).

Onde foram parar cineastas como Kawalerovicz (de quem temos "Madre Joana dos Anjos" em DVD), Aleksander Ford (1908-1980) e tantos outros? Bem, o ciclo é, de certa forma, uma resposta.

Os Estados Unidos respondem no festival com uma retrospectiva de William Wellman (1896-1975), mudo e sonoro, assim como em outros anos foram contemplados Ford, Howard Hawks (1896-1977), Raoul Walsh (1887-1980) e Allan Dwan (1885-1981). Wellman é um desses cineastas que vieram do mudo e continuaram a produzir clássicos no sonoro. Foi o autor do primeiro filme a ganhar o Oscar, em 1929 ("Asas", de 1927, é carne de vaca), mas sua rebeldia o impediu de ganhar o Oscar de direção.

Por falar em rebeldes, " A Viúva Alegre" (1925) do austríaco Erich von Stroheim (1885-1957), promete ser uma sensação do Ritrovato de 2014, com acompanhamento da orquestra Comunale di Bologna.

A França, por sua vez, será representada com uma retrospectiva de Germaine Dulac (1882-1942), pioneira e feminista, um dos principais nomes da "avant garde" dos anos 1920. Mas eu quase posso apostar que mais sucesso fará o restaurado "A Cadela" (1931), um Jean Renoir (1894-1979) fabuloso longa do começo da era sonoro.

Bem sonoro também é "A Dama de Shanghai" (1947), a parceria do diretor americano Orson Welles (1915-1985) e da atriz Rita Hayworth (1918-1987), recém-restaurado.

Como nos últimos anos, prossegue ainda a série dos primeiros sonoros japoneses. Nem todos tão raros assim: o "Filho Único" (1936) de Yasujirô Ozu (1903-1963) já passou no festival há dois anos e foi lançado em Paris no ano passado. Não é o caso de "Gubijinsô", um Kenji Mizoguchi de 1935, nem dos vários filmes de Heinosuke Gosho (1902-1981) ou Yasujiro Shimazu (1897-1945).

Depois de tudo que se falou aqui, resta dizer que muito ficou de fora deste artigo, desde o restauro de "Por Um Punhado de Dólares" do italiano Sergio Leone (1929-1989), ou "O Bandido Giuliano" (1962), de Francesco Rossi.

O principal do ano ficou para o final, e diz respeito a 1914. O festival bolonhês busca resgatar o início da Primeira Guerra Mundial a partir da reconstituição da atmosfera dos anos que precederam a guerra, exibindo o célebre seriado "Fantomas" (1913), do francês Louis Feuillade (1873-1925).

A maior surpresa, no entanto, talvez venha da Bélgica, onde Alfred Machin (1877-1929) filmou "Maudite Soit la Guerre" (maldita seja a guerra) em 1913: filme pacifista do qual eu, pessoalmente, nunca ouvi falar. Mas o fabuloso do Cinema Ritrovato é, em grande parte isso, a possibilidade de descobrir e resgatar dinossauros de cuja existência nem mesmo se sabia.

O Brasil está ausente no festival. Aliás, toda a América Latina. Seria hora de começar a se mexer e entrar nesse circuito de descobertas do qual, entre nós, o pioneirismo cabe ao festival CineOP de Ouro Preto.


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