Folha de S. Paulo


Já fui longe demais na violência, diz o autor norueguês best-seller Jo Nesbo

O escritor norueguês de maior sucesso de vendas está acomodado, de costas para a parede, em um elegante bar de uma rua residencial do oeste de Oslo. São 9h, e chove forte.

A capital norueguesa é assim no inverno, e desde minha chegada no dia anterior minha impressão dominante foi a de riqueza. Excetuado o Luxemburgo - um principado e paraíso fiscal de 500 mil moradores -, a Noruega é o país mais rico da Europa. O escritor Jo Nesbo, que foi jogador de futebol, corretor de ações e astro do rock antes de se dedicar à escrita, talvez seja o mais rico dos escritores do país.

O nome dele (Jo em norueguês é pronunciado "Iu") enfeita a fachada do teatro nacional porque uma versão teatral de "O Pó de Pum do Dr. Proctor", um de seus livros infantis, está por estrear, e será seguida por uma versão cinematográfica.

Ele está a ponto de publicar a tradução inglesa de seu mais recente romance de mistério, "O Filho", tendo decidido conferir à sua mais famosa criação, o deteve Harry Hole (pronuncia-se "Rúla"), uma folga depois de 10 livros e vendas de 20 milhões de cópias. (Ele diz que "não tem planos" de trazer Harry de volta, por enquanto, mas isso não significa que um retorno não acontecerá).

No ano passado, "Headhunters", filme baseado em outro dos thrillers de Nesbo, ganhou um prêmio Bafta. Como outros escritores famosos de todo o mundo, a exemplo de Margaret Atwood, ele foi convidado para escrever uma versão contemporânea de "Macbeth".

As manchetes literárias podem ser dominadas por Karl Ove Knausgaard, controvertido romancista e autobiógrafo que é compatriota e contemporâneo de Nesbo, mas este está vivendo um ótimo momento.

E agora, depois do sucesso internacional de séries escandinavas como "The Killing", "Borgen" e "The Bridge", Nesbo está começando a trabalhar para a TV. Este mês, sua primeira série dramática começará a ser filmada na Noruega. Chamada "Occupied", a história se passa em uma Noruega ocupada pelos russos.
"Quando apresentei a ideia, cerca de dois anos atrás, me disseram que o problema era que ela parecia um tanto exagerada", ele diz, contente. "Uma ocupação russa? Eles não saem atirando nos outros; limitam-se a aparecer e dizer que estão no controle".

Os acontecimentos recentes na Ucrânia, ele aponta, provaram que Nesbo está certo. "Creio que o sentimento de que estamos seguros e de que as coisas não podem mudar é uma ilusão", diz. "Essa é a parte assustadora, porque as coisas podem mudar muito rápido. O problema da Escandinávia é que achamos que nada vai piorar. Mas temos de aprender com outros países. Veja Iugoslávia nos anos 90 - um país democrático, que estava no caminho certo, e Slobodan Milosevic só precisou de seis meses para levá-los a uma guerra civil".

Ainda assim, a Oslo pacífica e próspera que vemos na vida real fica muito distante do inferno povoado por bandidos e drogas que os livros de Nesbo descrevem.

Harry Hole investiga assassinos seriais e outros homicidas. "O Filho" descreve a fuga da prisão de um drogado condenado indevidamente por homicídio, que inicia uma cruzada de vingança e encontra vilões - na polícia, serviço secreto e nos mais altos escalões da sociedade, bem como nas ruas - a cada passo. Será que estamos falando de uma terra de fantasia sobreposta a um lugar real?
"Não, isso existe", diz Nesbo. "Está escondido e não escondido ao mesmo tempo. Se você tivesse escolhido outra das saídas da estação ferroviária central, se veria em um dos mais movimentados mercados de heroína da Europa. Eu poderia lhe indicar pessoas de quem comprar heroína. Um cara sentado ali em uma cadeira de rodas é traficante; ele carrega as drogas; a moça que está com ele carrega o dinheiro. É como se fosse uma cena de 'The Wire'. A mesma coisa exatamente".

A comparação com a violenta Baltimore parece absurda, mas a Noruega tem um histórico, no que tange à heroína. Cerca de 240 pessoas por ano morrem de overdose no país - mais do que o número de vítimas fatais de acidentes de automóvel. E embora Nesbo afirme que a polícia não é tão ruim quanto em seus livros, um importante oficial da divisão de narcóticos da polícia de Oslo, Eirik Jensen, foi acusado de corrupção no mês passado, e a imprensa só fala disso.

"O crime internacional chegou à Noruega nos 20 últimos anos, e agora parece mais organizado, mas não é como se tivéssemos dois ou três chefões das drogas dirigindo o negócio. Para contar uma história você precisa organizá-la e simplificá-la. Em 'O Filho', criei um chefão do crime", ele diz.
"Eu diria que cerca de 90% do livro é uma descrição acurada da cidade, mas se as coisas de que preciso para uma história não existem, eu as crio. Escrevo sobre Oslo, mas com um tom sombrio".

Há anos as editoras começaram a descrever Nesbo como "o novo Stieg Larsson" nas capas de seus livros, com o objetivo de conduzi-lo ao posto que ficou vazio com a morte do escritor sueco criador da trilogia "Os Homens que Não Amavam as Mulheres". (A primeira tradução de Nesbo em inglês foi publicada em 2005, um ano depois que Larsson morreu de um ataque do coração, aos 50 anos).

Uma dúzia de romances mais tarde, Nesbo ainda está longe do sucesso fenomenal de Larsson, mas seu lugar no cânone da ficção de mistério escandinava, em companhia de Henning Mankell, criador do inspetor Kurt Wallander, e outros escritores, parece seguro.

Ainda que haja grandes diferenças entre esses escritores, seus livros compartilham de cenários nórdicos gelados, detetives horrivelmente traumatizados, extrema violência e comentários sociais que contrastam com o que se encontra em livros de mistério norte-americanos - tanto porque os autores escandinavos têm perspectivas distintas quanto porque as sociedades que descrevem são tão diferentes. (Em 2012, Anders Behring Breivik, assassino em massa norueguês, foi sentenciado à pena máxima permitida pelas leis do país, 21 anos de detenção.)

Em um país pequeno como a Noruega, com 5 milhões de habitantes (a Dinamarca tem 5,5 milhões e a Suécia 9,5 milhões), e apenas um punhado de astros da literatura conhecidos internacionalmente, a voz de um escritor como Nesbo importa.

Quando Breivik, um extremista de direita, matou 77 pessoas em 2011, Nesbo escreveu um artigo desafiador no qual insistia em que o país deveria "continuar como antes" e "se recusar a permitir que o medo dite limites". No dia de nossa conversa, o projeto de um memorial às vítimas de Breivik acabava de ser revelado: o artista sueco Jonas Dahlberg entalhará um ferimento em uma península diante da ilha de Utoya, onde 69 dos homicídios aconteceram.

A atrocidade de Breivik foi vista por alguns como prova de um lado obscuro da Escandinávia. (Se tivesse vivido para vê-la, Larsson talvez não tivesse se surpreendido tanto: dedicou anos a pesquisar a extrema direita europeia.) Mas passados três anos, e apesar de o Progresso, partido ao qual Breivik pertencia no passado, agora fazer parte do governo, Nesbo continua otimista.

"O quadro mais amplo é o de que a social-democracia é o lado vencedor", ele diz. "Na Noruega, sentimos que estamos no fim da história, que já realizamos a maioria das coisas. Sou otimista, e não acho que a Noruega seja mais racista do que outros países".

"A Noruega é um país jovem, nascido em 1905, e todos os países jovens precisam encontrar as coisas que serão parte de sua autoimagem. Para a Noruega, podemos falar sobre os exploradores polares, sobre a ideia - um tanto precária - de que resistimos fortemente aos nazistas, sobre os nossos atletas e sobre a ideia do país como devotado à liberdade, uma terra liberal e amistosa. É como um vale feliz, e é claro que as pessoas se perguntam o que nos torna um país tão admirável. A resposta provavelmente é o petróleo, porque a Noruega foi um dos países mais pobres da Europa".

"Se você observar a Suécia e a Dinamarca, e perceber como conseguiram comercializar toda espécie de coisa, de música a design, e compará-las à Noruega, verá que nós só extraímos petróleo, cortamos madeira, pescamos e enviamos tudo isso ao mundo. A Noruega jamais inventou coisa alguma. Fomos um país de trabalho braçal, e a única coisa de que a Noruega pode se orgulhar, nossa maior qualidade nacional desde sempre, está em sermos um país muito igualitário. Não tínhamos nobres. Tivemos reis, mas eram pequenos reis. É uma benção, de certa forma, vir de um país em que todo mundo era mais ou menos pobre. Trata-se de um país no qual até os partidos da direta, ainda que possam não sabê-lo, são em seu cerne sociais-democratas".

Se parte dos atrativos dos livros de Nesbo, Mankell e Larsson - e da série dinamarquesa de TV "The Killing" - vem de observar as diferentes camadas da sociedade e descobrir algo de podre nelas, no caso dos livros de Nesbo o horror mais escuro está no interior dos personagens. Um fã descreve Harry Hole como "o irmão caçula de Kurt Wallander", e entende essa descrição como elogio, mas alguns críticos consideram o lado autodestrutivo de Hole, que beira o niilismo, difícil de encarar.

Nesbo mesmo acha que foi longe demais com a violência. Sobre uma cena de "O Leopardo", na qual um homem é amarrado a um forno de lenha quente como tortura, e depois despertado com água gelada ao desmaiar, ele diz que "foi um caso de eu me entusiasmar demais com a descrição de dor e horror que estava fazendo e ao contemplar o ocorrido só posso lamentar, porque era desnecessário. Um designer finlandês uma vez me disse que tudo que é desnecessário em uma casa não demora a parecer feio. Creio que o mesmo valha para as palavras. Escrevi aquilo pelos motivos errados".

Mas se sua fé na versão norueguesa do modelo social nórdico é sólida como uma rocha, isso não significa que não haja diversão em imaginar o que aconteceria caso ele fosse desmantelado.
Durante minha visita surgiram reportagens de que o fundo nacional de investimento norueguês, que tem capital de US$ 840 bilhões, revisaria sua política sobre combustíveis fósseis. Na série de TV de Nesbo, um governo esquerdista corta a extração de petróleo para combater a mudança do clima. Com a conivência dos Estados Unidos e União Europeia, a Rússia invade a Noruega.

"Não é sobre o que está acontecendo, mas sobre o que poderia acontecer", ele diz. "Existe potencial risco de que isso aconteça? É como em 'O Filho' e nas histórias de Harry Hole: será algo plausível, de alguma maneira? Se usarmos nossa imaginação, creio que sim".

Jo Nesbo discute "The Redbreast", um dos romances protagonizados por Harry Hole, com John Mullan no clube do livro do "Guardian", em Kings Place, 29 de abril. "The Son" sai na semana que vem pela Harvill Secker.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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