Folha de S. Paulo


Obras para Olimpíada no Rio frustram crítico de arquitetura

O crítico de arquitetura do jornal "New York Times", Michael Kimmelman, já foi apelidado de "o crítico do povo" por preferir escrever sobre espaço público que sobre os moderníssimos edifícios dos arquitetos-celebridades.

Suas reportagens detonaram campanhas contra a reforma da Biblioteca Pública de Nova York, pela transformação da Penn Station e pela ligação do Brooklyn com o Queens por bondes (em vez de metrô).

Kimmelman participa nesta terça (27), no Rio, de debate sobre as relações entre a cidade e arte com o escultor norte-americano Richard Serra, durante o principal fórum de arquitetura brasileiro, Arq.Futuro.

O crítico conversou com a Folha sobre Copa do Mundo, leis de zoneamento, como comunidades às vezes matam projetos que são de seus próprio interesse e por que o urbanismo virou o maior tema de seus textos no "New York Times".

Thomas Struth/Creative Commons
O crítico do 'New York Times', Michael Kimmelman, em Berlim
O crítico do 'New York Times', Michael Kimmelman, em Berlim

ARQUITETURA NA RUA

Sei o que faz um prédio belo. Escrevi sobre arte e escultura por 20 anos no "New York Times", mas um prédio não é uma escultura. É vida, e a vida existe em contexto. Os arquitetos sabem disso. Tem que funcionar, tem que melhorar nossa vida. Podemos viver cercados de coisas bonitas. Gosto de escrever o que é que faz grande arquitetura, e que papel tem em melhorar nossas vidas. Como a arquitetura se encaixa com calçadas, ciclovias, metrôs.

É mais do que o visual deles, ou dos materiais. Empobrecemos o debate sobre arquitetura se não falamos desse papel social na vida diária da cidade. É a única maneira de escrever sobre arquitetura.

RIO DECEPCIONA

Tive uma decepção com o Rio. Nem tudo é culpa da Olimpíada. O prefeito Paes fala coisas certas, mas para fazer áreas urbanas saudáveis, você não joga uma área nas mãos de empreiteiras para construir torres corporativas e bota um museu do Calatrava do lado. Você precisa um mix de funções, ter prédios residenciais, de escritórios, varejo, mistura de classes sociais, algo que o Brasil parece não ter muita familiaridade. Tem que ter empregos por ali, parques, espaço público. O que vi não é satisfatório.

Já a Vila Olímpica faz com que a cidade cresça como um subúrbio americano sem fim, levando tudo para muito longe. Não dá para querer uma cidade densa e ficar espalhando novos bairros distantes ao mesmo tempo.

NÃO A FIFA

É muito raro você ver uma cidade acertar, tanto ao sediar a Copa, quanto a Olimpíada. A maioria das cidades faz o que a Fifa ou o COI querem. Não é a Fifa que deveria dizer o que elas fazem. No máximo, uma cooperação, você segue algumas regras do evento, mas o urbanismo não pode ser o da Fifa.

Cidades precisam ter um plano do que querem, que faça a cidade melhor no final. Londres tinha uma ideia, desenvolver o East End, criar um novo centro, melhorar o transporte coletivo até lá e usar os jogos, com a energia, o dinheiro, os investimentos que eles atraem, um prazo limitado, o que força as coisas acontecerem mais rapidamente.

Ter um prazo é bom. O Rio teve uma oportunidade de seguir Barcelona e Londres e claramente não o soube fazer.

PAPEL DE BOBO

Visitei o Maracanã também. Retrospectivamente, a ideia de ter Copa e Olimpíada com dois anos de diferença não foi a ideia mais esperta do mundo, nem a mais responsável. O que essas cidades vão fazer com esses estádios todos? Se você não foca no legado, faz papel de bobo

URBANISMO EXPORTAÇÃO

As maiores exportações urbana americana são os condomínios fechados e os shoppings centers. Olhe para o Rio e veja a Barra da Tijuca. Não é um futuro saudável para as cidades. O mundo sustentável precisa de lugares onde possamos caminhar, usar bicicleta e transporte público. O mercado sozinho constrói Barra da Tijuca ou Dubai.

NÃO NO MEU QUINTAL

Não é simples fazer habitação a um preço acessível. Não adianta querer prédios baixos, com muitos parques e ciclovias e esperar que o preço do m2 caia. Alguém precisa pagar essa conta. Muitas vezes a comunidade mata projetos que seriam de interesse das comunidades.

Politicamente é mais fácil dizer que tudo a comunidade tem que decidir, mas às vezes nada seria construído se dependêssemos das comunidades. Às vezes, há projetos que têm que vir de cima para baixo.

CARO E DEMORADO

San Francisco é a capital do "não no meu quintal" da América. Apesar de ser um foco de inovação e modernidade tecnológicas, é o lugar mais reacionário do país. Nada pode mudar, nada pode ser construído. O bairro Mission foi rezoneado para ter mais densidade, prédios mais altos, densos e sem garagem para estimular o transporte coletivo.

Havia uma antiga lanchonete KFC abandonada e um empreendedor queria fazer ali um prédio com 16 apartamentos, dois com valores subsidiados e sem garagem.

A comunidade exigiu um prédio menor, teve que cortar para 12 apartamentos, e colocar garagens. Depois, a comunidade continuou na Justiça, até chegar a nove apartamentos, quando a lei já não exige apartamentos "populares", nenhum barato e com garagens. Exatamente o contrário do que a cidade precisa.

Houve uma nova apelação e agora vai ter 12 apartamentos, dois subsidiados e sem garagens. Mas tudo isso levou sete anos de debate, enquanto a população crescia e o m2 foi encarecendo. Isso acontece muito. As comunidades podem pensar muito apenas nelas e em seus interesses, não na cidade como um todo.

BOAS INTENÇÕES

A Catedral São João, o Divino, quer construir prédios em seus terrenos, ela precisa de dinheiro, tem direito a fazer, e tem boas intenções.

O empreendedor que se associou à Catedral é bom, certamente vai trabalhar com bons arquitetos, quer contratar operários locais e oferecer unidades mais baratas. Mas os vizinhos não querem nenhum prédio lá. Querem manter um lugar bonito e manter sua vista. Todos os envolvidos têm boas intenções, mas ocorre uma enorme paralisia.

O maior assunto deste século será como desenhar essas cidades. Como evitar a proliferação de favelas. Teremos nove bilhões de pessoas, um terço em favelas. A menos que saibamos como redesenhar as cidades.

ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

É muito difícil colocar regras na especulação imobiliária. Há uma constante tensão em Nova York por causa do enorme valor do m2 da cidade. Que só é tão valorizado agora pela saúde da cidade. Os interesses do mercado imobiliário dependem da saúde social da cidade, e esta depende dos interesses desse mercado em investir nela. O papel da política é equilibrar esses interesses.

Os construtores não são inimigos do progresso social, mas eles têm seus próprios interesses. Parece simples, mas é inacreditavelmente complicado. Temos zoneamento, organizações comunitárias, audiências públicas, prestação de contas, mas ainda assim é difícil. Nova York, São Paulo, são organismos com partes variadas que mudam constantemente.

Se perde a alma, perde o valor. O mercado imobiliário precisa de um lugar que todos queiram morar.

ACESSÍVEL PRA QUEM?

O governo Bloomberg tentou fazer habitação a preço acessível, ele sabia que era assunto importante. Ele criou ou renovou 150 mil unidades nesses 12 anos, mas também perderam muitas unidades nesse período.
[O novo prefeito] De Blasio está correto. A percepção de que Nova York é inacessível para muitos bolsos virou o foco da campanha para prefeitura aqui.

A questão é: acessível para quem? Nova York precisa continuar a ser acessível para os funcionários públicos, para enfermeiros, lixeiros, professores, para a classe média, para recém-formados. Temos mais políticas para os muito pobres e para os sem-teto, mas também precisamos conseguir acomodar a classe média, ela estava fora da conversa.


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