Folha de S. Paulo


Estilistas repensam a moda na era do Instagram

Na exposição sobre Dries van Noten no Musée des Arts Décoratifs de Paris há um vídeo que reúne sequências de 20 anos de seus desfiles —um "supercut", no jargão online.

Em uma visita à exposição algum tempo atrás, Van Noten indicava com acenos de cabeça seu reconhecimento de momentos memoráveis: modelos masculinos pedalando bicicletas, mulheres caminhando por sobre uma imensa mesa de jantar. Mas o que mais se destacava eram as fantasmagóricas luzes brancas iluminando os rostos de pessoas da audiência em alguns de seus desfiles mais recentes —os smartphones dos espectadores, apontou o estilista.

Os fotógrafos profissionais posicionados nos tablados com visão ampla da passarela agora representam apenas uma fração das pessoas que disputam furiosamente o direito de documentar cada roupa, acessório e peça do cenário.

Quase todos os espectadores dos desfiles, da primeira fila aos que assistem em pé lá no fundo, agora chegam com seus celulares nas mãos e seu aplicativo do Instagram aberto.

Os celulares dotados de câmeras que todo mundo carrega se tornaram tão comuns que Danielle Sherman, diretora de criação da Edun, diz que quando pediu 5 iPhones emprestados a um diretor —equipado com uma bateria de 20 deles— para que criasse um vídeo de seu desfile para o outono de 2014, quase ninguém estranhou. "Ninguém comentou, ou questionou, ou mesmo percebeu", ela disse.

Essa é a moda na era do Instagram, um período inspirador no qual a mídia digital está mudando a maneira pela qual as roupas são apresentadas e mesmo a maneira pela qual são desenhadas. Os desfiles são calibrados para servir como experiências socialmente compartilhadas, e a moda mesma é redimensionada para capturar os olhares em telas bidimensionais, o que leva alguns céticos a imaginar o que está sendo perdido ou sacrificado agora que a moda é apenas o combustível de uma máquina digital.

Inquestionavelmente, o advento da mídia digital alterou a os fundamentos da moda, diz o estilista Alexander Wang. "Da forma pela qual gravamos os desfiles à forma pela qual desenhamos e fazemos as roupas, passando pela maneira com que as exibimos, tudo mudou".

A mídia digital também mudou a maneira pela qual a moda é reportada, consumida e compartilhada. As publicações e sites especializados que no passado eram os veículos essenciais para a cobertura das coleções tiveram seu território invadido por operadores individuais. "Vejo os desfiles no Instagram, agora", diz Eva Chen, editora-chefe da "Lucky".

"Em certo sentido, cada pessoa da audiência é um veículo de mídia", diz Keith Baptista, sócio diretor da Prodject, agência de criação que produz desfiles para clientes como Wang, Giorgio Armani e Ralph Lauren. "Estão todos capturando esses momentos nessa experiência ao vivo, para contar suas histórias". (Considere que a conta pessoal de Chen no Instagram, por exemplo, tem mais seguidores que a de sua revista).

Criar uma experiência única —e por definição compartilhável— para os mal acostumados espectadores de desfiles se tornou parte da missão obrigatória dos estilistas. Os desfiles são concebidos para deslumbrar não apenas os presentes mas os seus seguidores.

(Isso pode ser considerado um retorno necessário sobre o investimento, porque, de acordo com Julie Mannion, presidente de serviços de criação da agência de relações públicas e produtora KCD, um grande desfile pode custar entre US$ 2 milhões e US$ 8 milhões, em alguns casos atingindo os US$ 10 milhões, e dura menos de 10 minutos.

Poucos desfiles conseguem concorrer com os da Chanel em termos de exageros teatrais. Mas a companhia estabeleceu um padrão desafiador até para ela mesma, em fevereiro, ao erigir um grande supermercado com prateleiras repletas de 100 mil produtos falsos, criados pela Chanel para o evento. Na seção de carnes, por exemplo, os presuntos tinham o rótulo "Jambon Cambon", uma referência ao nome da rua na qual a Chanel mantém seus escritórios e uma loja.

Antes do desfile, os espectadores podiam passear pelos corredores, registrando selfies, antes que as modelos, empurrando carrinhos de supermercado pelas passarelas, os enchessem de produtos. Foi um desfile que atraiu imensa atenção no Instagram, e uma tempestade de "curtidas": uma foto de Susanna Lau, mais conhecida por seu pseudônimo de blog, Susanna Bubble, conquistou mais de 2.670 "curtidas", o dobro do número obtido em alguns dos demais desfiles que ela cobre. Uma foto tirada por Chen atraiu 2.330 "curtidas", centenas a mais do que os registrados por outros desfiles postados ao lado do evento da Chanel no Instagram.

O fervor foi tamanho que a coleção mesma foi um tanto eclipsada. (Talvez consciente da atenção que a mise en scène recebeu, em detrimento da moda, a Chanel preferiu não comentar sobre os cenários).

Não são apenas as grifes maiores que pensam grande. Wang ganhou reputação como promotor de espetáculos que tratam com simpatia a mídia social. Em fevereiro, seu desfile foi encerrado por modelos de aparência robótica girando sobre uma plataforma, enquanto ondas de ar aquecido mudavam a cor de seus trajes sensíveis à temperatura —um momento que parecia concebido especialmente para o Instagram.

"Tentamos imaginar que aquelas imagens chegarão à rede", ele disse, "e a comparar o que é visível da posição dos fotógrafos e o que é visível pela plateia", diz Wang.

A imagem fotográfica, acrescenta Wang, é "algo que levamos em profunda consideração, mesmo ao desenvolver uma coleção. Às vezes preciso admitir, como estilista, que é fácil cair na armadilha de pensar sobre roupas para uma foto, em lugar de pensar nelas como algo para o mercado ou showroom".

Carlo Allegri/Reuters
O estilista após desfile em Nova York
O estilista após desfile em Nova York

A atenção que a mídia digital agora recebe vai além da cenografia e da montagem de desfiles. Ela também começou a influenciar o desenho de muitas coleções, dizem estilistas e críticos. Tiziana Cardini, diretora de moda da La Rinascente, uma cadeia de lojas de departamentos de Milão e colaboradora da "Vogue" italiana, percebeu a mudança.

"A moda se tornou bidimensional", ela diz. "É chapada. Vejo que os estilistas, especialmente os mais jovens, consideram formas e volumes de maneira totalmente diferente; o mesmo vale para as cores; acho que eles prestam muito mais atenção ao valor fotogênico de um modelo". Perguntada sobre o motivo para isso, ela responde: "Foi a Web; ela definitivamente mudou a linguagem".

Os jovens editores também foram condicionados a pensar em moda no plano chapado de uma tela digital.

"O que me preocupa é a mudança geracional", diz Ed Filipowski, presidente de relações com a mídia da KCD. "Grande parte da nova geração não vê roupas com os próprios olhos; foi treinada a ver roupas pela primeira vez por meio de fotos, bidimensionais, e não com seus olhos, tridimensionais".

Será que foi essa tendência que Rei Kawakubo, a oracular guru da Comme des Garçons, satirizou —ou celebrou?— com sua coleção do outono de 2012, que consistia de roupas de feltro achatadas como roupas de bonecas de papel? "O futuro é bidimensional", foi a explicação dela durante o desfile.

Tanto Filipowski quanto Cardini ressaltam que a mudança que descrevem não é necessariamente negativa.A KCD, de fato, implementou "desfiles de moda digitais" em vídeo, que só acontecem online, ainda que Filipowski tenha dito que eles não têm por objetivo substituir os desfiles tradicionais.

As mudanças causadas pela tela plana têm potenciais lados negativos. Ainda que diversos estilistas tenham mencionado a capacidade dos usuários do Instagram para capturar um modelo de muito mais ângulos do que no passado, os detalhes mais intrincados do corte e construção desaparecem quando capturados em apenas duas dimensões. Ocasiões que podem ser inspiradoras ao vivo muitas vezes não são tratadas com a devida justiça na tela.

A coleção de outono de Junya Watanabe, toda preta (uma cor notoriamente difícil de fotografar), era composta por peças de muitos tecidos costurados juntos, formando um patchwork. Na tela, as nuanças muitas vezes não aparecem. A couture, que depende de trabalho de detalhe, pode sofrer ainda mais. "As pessoas não conseguem ver alta costura muito bem na tela de um computador", se queixou Raf Simons, da Dior, à revista "Interview".

Stephane Mahe/Reuters
Modelo apresenta roupa da estilista, na semana de moda de Paris
Modelo apresenta roupa da estilista, na semana de moda de Paris

A onipresença online pode resultar em superexposição e facilidade de cópia. Phoebe Philo, da Céline, restringe o trabalho dos fotógrafos, se recusa a permitir que espectadores fotografem algumas de suas criações com seus smartphones, e só fornece fotos a veículos de mídia quando as coleções chegam às lojas.

Em 2010, Tom Ford seguiu caminho semelhante ao proibir fotógrafos e celulares —apesar dos protestos da mídia noticiosa— ao exibir sua primeira coleção de passarela em anos.

Um fato revelador é que Ford acabou recuando. Seus recentes desfiles na Fashion Week de Londres foram vistos online, como a maioria dos desfiles são —ou seja, na íntegra, e quase instantaneamente.

Embora algumas grifes ainda tentem restringir o acesso — "existem marcas que bloqueiam os sinais de celulares de e redes de dados durante seus desfiles", diz Baptista, o produtor, se recusando a identificá-las—, a maioria está disposta a aceitar que não há como devolver o leite derramado à garrafa digital.

Afinal, há aspectos positivos, além das desvantagens.

Mary Katrantzou, estilista de Londres, está consciente das possibilidades de exibir parte de seu trabalho online desde que era aluna da Central Saint Martins. Depois de criar uma coleção na qual diversos dos modelos tinham anquinhas, ela se lembrou de Louise Wilson, a desbocada diretora do programa de mestrado da escola, gritando: "A frente, Mary! Na Style.com, as pessoas só veem a frente!"

Suas estampas brilhantes e palheta de cores, como as de muitos estilistas de sua geração, podem ter sido afetadas pelo espaço digital, como sugere Cardini, mas Katrantzou atribui a isso a diferenciação entre seu trabalho e a multidão de outras coleções visíveis na Web, o que lhe oferece vantagem sobre os estilistas que não se preocupam com a acessibilidade digital de suas criações.

Carl Court/AFP
Desfile de Mary Katrantzou em Londres, em 2012
Desfile de Mary Katrantzou em Londres, em 2012

O mundo digital também pode abrir linhas de comunicações mais diretas do que no passado entre estilistas e seus fãs. "Gosto de compartilhar com as pessoas", disse Riccardo Tisci, diretor de criação da Givenchy e usuário entusiástico do Instagram, durante recente visita a Nova York. Tisci prefere usar essa mídia para compartilhar não necessariamente as roupas que desenha, mas aquilo que as inspira, como a arquitetura e design de Giò Ponti que influenciaram uma recente coleção de pré-outono.

"Na Ucrânia, uma menina que não sabe quem é Giò Ponti" vê a coleção e a curte no Instagram, e "não sabe como cheguei à ideia", ele diz. "Ver o começo da história é bonito. Penso que o Instagram, usado corretamente, é positivo".

Os estilistas não são os únicos a aproveitar a liberdade digital. A produtora Carlyne Cerf de Dudzeele, veteraníssima do setor de moda, agora tem um programa no YouTube e usa o Instagram alegremente. Ainda que tenha trabalhado com fotógrafos como Peter Lindbergh e Steven Meisel, ela recentemente decidiu registrar moda por conta própria para um artigo publicado pela revista "System". Todas as fotos, como a imagem de abertura do artigo deixava claro, foram "registradas pelo meu iPhone".

A introdução dela ao ensaio fotográfico proclamava: "Novo Mundo / Sem Retoques / Sem Assistentes/ Orçamento Zero, Brainstorm Zero, Moodboard Zero. Paraíso!!!"

E, especialmente importante para os estilistas, no novo mundo qualquer celular pode ser uma fonte de faturamento. Quando Katrantzou começou a vender produtos em seu site, ela postou no Instagram uma foto de um minivestido sofisticado, um modelo chamado Midnight Chrysa. Descrevendo-o como "vestido imponente", ela informou o preço: US$ 8,68 mil. Três foram vendidos no mesmo dia.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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