Folha de S. Paulo


Livres das gravadoras, cantores veem melhoras na gestão de direitos autorais

O declínio das gravadoras deixou artistas livres, porém à deriva. A arrecadação de direitos autorais melhorou, mas a fiscalização é inviável. A democracia de opinião, com parlamento e diálogo, perdeu espaço para a de emoção, em que pessoas discutem menos, falam menos e sentem mais.

Esse diagnóstico surgiu do encontro promovido pela Folha com Ney Matogrosso, 72, João Bosco, 67, e Zélia Duncan, 49, para refletir sobre mudanças culturais e políticas desde 1988, em razão dos 25 anos do Prêmio da Música Brasileira (ex-Prêmio Sharp).

A reunião desse trio, vencedor em edições anteriores, ocorreu na casa de José Maurício Machline, idealizador do prêmio, na zona sul do Rio.

Em 1988, Cazuza e Legião Urbana, vencedores na cerimônia daquele ano, vocalizavam no palco sua indignação e a de toda uma geração.

Hoje, quando a política fica sob os holofotes durante o encontro de Ney, Bosco, Zélia e Machline, as palavras deles tornam-se amargas.

"Tenho asco dos políticos. Olho essa gente e tenho vontade de meter o dedo na garganta", diz Ney, que teme soar oportunista caso participe das manifestações de rua. "A política vive o seu pior momento", concorda João Bosco. "Não sei nem se vou votar", resume Zélia.

A seguir, os principais trechos da conversa.

Colaborou MARCO AURÉLIO CANÔNICO

Daniel Marenco/ Folhapress
De esq. para dir., Ney Matogrosso, José Maurício Machline, João Bosco e Zélia Duncan
De esq. para dir., Ney Matogrosso, José Maurício Machline, João Bosco e Zélia Duncan

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A QUEDA DAS GRAVADORAS

Machline - A internet veio a favor do artista. Talvez ele se sinta um pouco órfão daquela mãe gravadora, mas hoje é dono de seu produto e consegue democratizar o seu som de uma maneira mais forte.
Ney - Não sinto falta porque sempre encarei a mãe gravadora. Quando não estava satisfeito, dizia: "Tchau, vou embora". Ficavam enlouquecidas porque eu era rebelde, mas estava dentro de uma coisa que eles davam milhões para você ficar. Eu nunca peguei milhões, para ter a minha independência. Não sinto a menor falta. Era um apoio teórico.
Zélia - Peguei a raspa do tacho dessa época mais paternal. Quando estourei com "Catedral" [1994], a Warner não estourava com um artista novo havia seis anos. Não me encaixei nos moldes, mas gravadoras foram importantes.

MENOS RÁDIO, MAIS SHOWS
Ney - Existia um trabalho de rádio que não existe mais. Ia ser lançado um disco, o disco era distribuído para todas as rádios do Brasil. Você viajava pelo país e em toda cidade que ia, fazia entrevistas de rádio, programas. Isso acabou.
Zélia - Agora pelo menos a gente não precisa esperar o disco do Roberto Carlos para lançar o nosso. Todo dia é dia.
João Bosco - Meu projeto era, chegando a uma certa fase da vida, ficar tocando violão quieto em casa, mas trabalho muito mais do que há 20 anos, parte por necessidade. Adoro fazer isso, é o que sonhei fazer na vida. E quanto mais faz, melhor você fica. Cria uma disciplina, a mão fica mais dinâmica, a voz. A cabeça não fica com espaço para pensar bobagem.

DIREITOS AUTORAIS
João Bosco - O Ecad [entidade que administra e distribui os direitos autorais de músicas no país] é necessário. Com o Ecad, a situação melhorou muito. Podemos discutir: qual é a porcentagem de erro na distribuição? Recebo menos do que eu deveria receber.
É o jeito do Brasil, que não se limita ao Ecad. Você precisa criar uma instituição para tomar conta do Ecad e depois criar outra instituição para tomar conta daquela que toma conta do Ecad.
Ney - O Ecad me pagava por trimestre algo como R$ 30. "Estão debochando de mim, não é possível", pensava. Agora, após esses entreveros [investigação na Câmara, lei para fiscalizar a entidade e briga judicial contra TVs por mais dinheiro relativo aos direitos autorais das músicas], mandam R$ 2.000. Melhorei, hein?

POLÍTICA E VOTO NULO
Ney - Ninguém está interessado em participar da política, se aproximar dessa sem-vergonhice, dessa lambança que virou a política. Tenho asco da política e dos políticos. Olho essa gente e tenho vontade de meter o dedo na garganta.
João Bosco - A política vive o seu momento pior como solução de representação popular. Está criando uma apatia, indiferença e indignação muito grande. Os políticos se relacionam com esse dinheiro [público] como se fosse da viúva. Mas não sou viúva! Sou trabalhador, pago imposto.
Ney - Já decidi que vou anular o meu voto, porque eu já anulei conscientemente. Não vou votar. Não quero votar.
Zélia - Não sei se vou votar. E nunca me passou pela cabeça anular um voto, mas agora...
João Bosco "" Em princípio pode até ser [ruim anular o voto], mas vamos supor que a urna registrasse que a maior parte de eleitores não quis tomar parte naquilo. Não seria um choque grande? Não obrigaria a pensar em algo?

MANIFESTAÇÕES E ARTISTAS
Ney - O único fato novo que merece ser considerado e me deixa esperançoso é o de a multidão ter saído à rua. E vai sair de novo. Não era uma manifestação artística, era da população. Amigos meus me perguntavam se eu não sairia.
Respondia: "Não, quero ver essa beleza de 1 milhão de brasileiros". Não precisam de mim. Pareceria oportunismo da minha parte ir lá. Nas Diretas Já eu fui porque era importante estar. Agora, não preciso estar lá. Para que um a mais?
João Bosco - A música [de protesto] tem sua dinâmica em relação aos tempos. São outros, as necessidades são outras. O Muniz Sodré [comunicólogo e sociólogo] disse algo bacana. Ele acha que a democracia de opinião, com o parlamento e o diálogo, foi substituída pelo que chama de democracia de emoção.
Importa a afetividade, a emoção diante daquilo. Tem a música que você gosta, mas não precisa explicar por quê. As pessoas discutem menos, falam menos e sentem mais.


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