Folha de S. Paulo


Volta a um tema já filmado é traço comum em filmes do 'É Tudo Verdade'

Que fim levaram as aspirações de jovens dançarinos de uma comunidade do Rio, dez anos após virarem filme?

A família que aparece destroçada no clássico de Eduardo Coutinho, "Cabra Marcado para Morrer" (1984), se reaproximou depois?

Perguntas como essas norteiam documentários do festival É Tudo Verdade, que ocorre em abril, em São Paulo, Rio e Campinas.

A memória e o processo de retorno dos realizadores a assuntos, personagens e cenários de antes estão no cerne de "A Alma da Gente", "Sobreviventes de Galileia", "A Família de Elizabeth Teixeira", "Aldeia de Alao" e "Canção da Floresta" (filme que abre o festival em São Paulo).

PERDAS E VITÓRIAS

O tempo protagoniza "Cabra Marcado para Morrer", filme que Eduardo Coutinho (1933-2014) inicia às vésperas do golpe de 1964 para reencenar vida e morte de um líder camponês e retoma 17 anos depois, em forma de documentário, sobre o que ficou pelo caminho: esboços de reforma agrária, laços familiares e um esqueleto de ficção.

Pano rápido: 2013. As perdas que o tempo impõe sem oferecer peças de reposição mas também as pequenas vitórias sobre o esquecimento voltam a ser o fio condutor no média "A Família de Elizabeth Teixeira" e no curta "Sobreviventes de Galileia".

São reencontros com figuras e cenários de "Cabra", que Coutinho registrou para um DVD a sair nesta semana pelo Instituto Moreira Salles, 30 anos após a estreia do filme. São também amostras da fase final da produção do diretor, morto em fevereiro.

"Sobreviventes" monta um almanaque de meio século de vida social brasileira. O entusiasmo do "ator de ocasião", o agricultor Cícero da Silva, ao reencontrar o interlocutor sensível que Coutinho era, amacia os calos das histórias pessoais de um e de outro. Diz Cícero ao diretor: "Tá acabadinho, velho como eu".

DOIS TEMPOS

Uma peça-chave para essa construção de passado e presente nos filmes é a edição. A montadora Jordana Berg trabalhou em três dessas obras: nas duas de Coutinho e em "A Alma da Gente", de Helena Solberg e David Meyer.

"Uma dificuldade é definir em que momento se confrontam os dois tempos seguidamente, um colado no outro. O quanto você precisa se apoiar no tempo passado para que a pessoa se apegue ao personagem no presente, sem construir uma narrativa previsível", explica Berg.

Ela também montou "Família Braz - Dois Tempos", vencedor do É Tudo Verdade de 2011, em que os diretores Dorrit Harazim e Arthur Fontes revisitam uma família dez anos após a primeira vez.

É PRECISO VOLTAR

Um retorno não planejado às locações iniciais ocorreu em "A Alma da Gente".

Em 2002, os realizadores acompanham a rotina de ensaios de 60 adolescentes integrantes do Corpo de Dança da Maré, coordenado pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo no Complexo da Maré, no Rio.

Solberg relata que os realizadores ficaram "obcecados" por saber o impacto da experiência sobre os personagens.

A volta ocorreu dez anos após a filmagem do projeto que durou três anos e rendeu três espetáculos de dança, além de efeitos permanentes na vida de jovens.

O gênero documentário, diz Solberg, é importante na construção da memória. "Não muda a realidade, mas pode trazer revelações para reflexões importantes."

Na visão de Amir Labaki, criador do É Tudo Verdade, esses filmes levantam as consequências de um pacto ético pressuposto entre documentarista e personagens.

"Estabelece-se um tipo de elo que vai repercutir na vida deles para sempre. Esse pacto persiste enquanto aquele filme existir, para sempre."

Segundo Labaki, o término de uma filmagem não esgota a relação entre diretor e personagens, situações ou cenários, e por isso há esse subgênero documental em que os realizadores se colocam no filme e discutem o processo de criação -movimento que se observa em filmes nacionais do festival, mas não só.

O alemão "Canção da Floresta" narra a visita de um americano a seu país de origem após 25 anos vivendo na República Centro-Africana, para onde fora a fim de pesquisar música dos pigmeus.

Já o diretor chinês Li Youjie regressa a sua aldeia natal. "Muitos foram embora e não voltaram. Por que afinal alguém voltaria? É a mesma vila que amei quando criança? Meu amor pela vila é real ou é fruto da minha imaginação?", ele questiona, no monólogo inicial de "Aldeia de Alao". "O que é um lar?", parece querer descobrir a obra, filmada por sete anos.


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