Folha de S. Paulo


Crítica: Romance de uruguaia Inés Bortagaray fisga leitor pela delicadeza

O tamanho compacto, a cor de um azul-bebê, o título, a linguagem, tudo em "Um, Dois e Já", primeiro livro da uruguaia Inés Bortagaray no Brasil, captura o leitor instantaneamente pela delicadeza.

E instantaneamente, nesse caso, não é uma palavra gratuita, porque a trama toda da narrativa não dura mais do que algumas horas: aquelas horas decisivas, para uma criança, de um traslado dentro de um carro, em direção às férias com a família.

Desde as primeiras palavras —"Vejo um poste que passa e vai embora até que vejo outro poste que passa e vai embora, mas nunca totalmente, porque na ida nem deixa rastro"— a narradora, uma garota de 10 ou 12 anos, conta as sensações de uma viagem com os irmãos no banco de trás de um carro.

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A escritora e roteirista uruguaia Inés Bortagaray
A escritora e roteirista uruguaia Inés Bortagaray

As brigas para ver quem senta na janela, as brincadeiras de palavras, as comidas que a mãe providencia, as paradas para o xixi, o enjoo, o rádio, tudo conduz o leitor, sempre pela ação e pela sensação, a cenas que ele já conhece de alguma forma —mesmo que não as tenha vivido literalmente.

O mundo interno da menina, cheio de "coisas preferidas", fantasias e medos, descortina, ao mesmo tempo em que causa empatia e nostalgia, também o cenário da ditadura uruguaia dos anos 80.

O leitor vai descobrindo, indiretamente, que esses pais que viajam no banco da frente são militantes de esquerda, que está havendo uma guerra nas Malvinas e que a educação que os quatro filhos recebem é progressista.

Não é preciso que os detalhes —como o fato de o peixe que a garota deixa aos cuidados de uma amiga se chamar Outro— sejam interpretados metaforicamente.

Não são metáforas; correspondem exatamente àquilo que se está dizendo e isso em nada diminui a potência de denúncia do livro.

É a prova de que uma história pode, ao mesmo tempo, provocar sensações e também remeter à consciência histórica. Aos poucos, assim, como quem não quer nada, vai se reconhecendo uma época, uma família, uma fenomenologia.

Um mundo que, de certa forma, acabou, mas que provavelmente continua, nas memórias de quem viveu aqueles anos, dentro de carros com outras famílias e, quem sabe, ainda nos carros em que algumas famílias viajam para passar as férias em alguma casa do litoral de alguma praia da América Latina.

NOEMI JAFFE é doutora em literatura brasileira e autora de "O que os Cegos Estão Sonhando?" (Editora 34).

UM, DOIS E JÁ
AUTORA Inés Bortagaray
TRADUÇÃO Miguel Del Castillo
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 26 (96 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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