Folha de S. Paulo


Revolucionário do flamenco, violonista Paco de Lucía morre aos 66

O violonista espanhol Paco de Lucía morreu nesta quarta-feira (26), em Cancún, no México, vítima de um ataque cardíaco.

A morte do artista, que tinha 66 anos, foi anunciada pelo gabinete de imprensa da Prefeitura de Algeciras, sua cidade natal, na província de Cádiz, no sul da Espanha. A cidade decretou três dias de luto pela perda do "maior violonista de todos os tempos".

Em comunicado oficial, a família do músico diz que "não há consolo nem para os que o conheciam, nem para os que o amavam, sem conhecê-lo". Segundo eles, Paco "viveu como quis" e morreu brincando com seus filhos "ao lado do mar".

O músico teria passado mal subitamente e morrido a caminho do hospital. "Boa viagem, nosso amado", concluem os familiares na nota. O artista, que teve cinco filhos, atualmente era casado pela segunda vez, com a mexicana Gabriela Carrasco.

Paco de Lucía foi um dos maiores expoentes da música flamenca. A partir dos anos 1960, o artista revolucionou o estilo, então "uma música de museu", com a introdução de novas influências, como jazz, bossa nova, blues, salsa e pop.

Em 2004, ele recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias das Artes, reconhecimento do governo espanhol à sua contribuição para a cultura. Paco era também doutor honoris causa pela Universidade de Cádiz e pelo Berklee College of Music de Boston.

No último mês de novembro, o artista havia feito três apresentações no país —Rio, São Paulo e Porto Alegre. O espanhol não vinha ao Brasil havia 16 anos —"porque é muito longe", disse ele, acostumado a tocar especialmente na Europa, à Folha, na época dos shows.

"Abri uma porta para que entrasse ar, com muito respeito à tradição, mas não obediência, o que é muito diferente", disse à reportagem sobre a revolução que promoveu no flamenco. "Por que contar as coisas com dez palavras se você pode usar cem?", comentou sobre a mistura de ritmos que apreciava.

"Por muito tempo, os puristas do flamenco queriam me colocar para fora do 'clube'. Mas eu sabia que as gerações novas iriam entender e me agradecer por aquela abertura."

A morte do músico representa "uma perda irreparável para o mundo da cultura, para a Andaluzia", declarou o prefeito de Algeciras, José Ignacio Landaluce. O corpo do músico deve ser enterrado na sua cidade natal.

"A morte de Paco de Lucía transforma o gênio em lenda. Seu legado perdurará para sempre, assim como o carinho que sempre mostrou por sua terra. Apesar dele ter partido, sua música, sua maneira genial de interpretar, seu caráter, sempre estará entre nós", afirmou ainda o prefeito no comunicado.

CARREIRA PRECOCE

Francisco Sánchez Gómez, mais conhecido pelo seu nome artístico, começou a carreira aos 12 anos, quando formou o dueto Los Chiquitos de Algeciras, com seu irmão Pepe nos vocais. O violonista gostava de lembrar que devia a carreira ao pai, Antonio Sánchez, um cantor de flamenco desconhecido.

Com carreira precoce, Paco aos 15 anos já colaborava em gravações de discos em Madri e, quando atingiu a maioridade, assinou contrato para seu primeiro álbum.

Na época, conheceu outro músico que virou um mito do flamenco moderno, o cantor Camarón de la Isla (1950-1992), com quem fez grandes colaborações.

"Os ciganos são melhores porque escutam a música desde que nascem. Se não tivesse nascido na casa de meu pai, eu não seria ninguém hoje. Não acredito no gênio espontâneo. Meu pai me obrigou a tocar violão desde que era criança", afirmou no livro "Paco de Lucía - Una Nueva Tradición para la Guitarra Flamenca". "Ele [o pai] perguntava 'durante quanto tempo você praticou?'. Eu respondia 'dez ou 12 horas' e via sua cara de felicidade", contou.

O músico, no entanto, dizia não gostar de fazer exercícios tradicionais no instrumento. "Isso de ficar fazendo exercícios no violão é muito chato, me deixa nervoso, me perturba", contou à Folha em novembro passado. Paco, no entanto, era rigoroso antes dos shows: chegava duas horas antes para aquecer as mãos no instrumento.

Já em casa, preferia relaxar. "Quando fecho a caixa do violão porque estou saturado, a última coisa que quero é que falem comigo sobre violão. Quero rir, comer, beber, me divertir e não continuar com a mesma coisa. Isso acontece com qualquer profissional que se dedique com a paixão com que eu me dedico", disse durante a entrevista.

Paco se dizia apreciador de música brasileira, que teria sido uma grande influência para suas criações. Com Djavan, gravou violão para uma versão de "Oceano".

"Paco foi o mais brilhante instrumentista que eu conheci. A perfeição e expressividade de sua execução eram inimagináveis mesmo para os grandes violonistas do mundo inteiro. A velocidade que ele imprimia ao tocar trazia uma limpidez incompatível para qualquer outro. Isso sem falar na beleza e originalidade de suas frases, no sentimento de cada nota", escreveu Djavan em nota de pesar divulgada à imprensa.

'VIOLÃO DE LUTO'

Em novembro passado, aproveitando sua vinda ao Brasil, Paco assistiu, em Porto Alegre, a um concerto do violonista brasileiro Yamandu Costa com Guto Wirtti (baixolão) e Arthur Bonilla
(violão de sete cordas). Ao final do show, o espanhol conversou com o violonista gaúcho no camarim.

"Estou muito triste, arrasado. Ele era um cara super humilde, era uma lenda viva. Se aproximou de mim de uma forma muito espontânea. Ele deu uma olhada no meu violão e conversamos sobre instrumentos, seu repertório. Ele ficou um pouco constrangido de fumar um cigarro no camarim, disse que deveríamos fazer um churrasco da próxima vez que ele viesse ao Brasil e que deveríamos nos encontrar com mais calma. Ia rolar uma aproximação que infelizmente não deu", diz Yamandu.

No dia seguinte, o brasileiro foi ao show de Paco. Segundo ele, o espanhol lhe dedicou uma música durante a apresentação.

"De alguma maneira, estou confortado porque cheguei a conhecê-lo. Mas, hoje, o violão está de luto no mundo. Seu legado não morre. Ele conseguiu levar a música do lugar dele para o mundo, como o Tom Jobim fez com a música carioca ou o [Astor] Piazzolla com o tango", afirma o gaúcho.

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DA ANDALUZIA PARA O MUNDO
Destaques da trajetória de Paco de Lucía

1947
Nasce, em 21 de dezembro, na cidade de Algeciras, na região espanhola de Andaluzia, com o nome de Francisco Sánchez Gómez

1962
Ganha com seu irmão Pepe um concurso de flamenco na cidade de Jerez de la Frontera; os dois formavam a dupla Los Chiquitos de Algeciras

1968
Conhece em Madri o cantor Camarón de la Isla, com quem forma uma dupla por 12 anos e grava nove discos

1975
Torna-se o primeiro músico de flamenco a tocar no Teatro Real, a ópera de Madri. No mesmo ano lança o álbum "Entre Dos Aguas"

1981
Junto dos violonistas Al Di Meola e John McLaughlin, lança o álbum "Friday Night in San Francisco"

1992
Morre de câncer Camarón de la Isla, ex-parceiro de Paco

1994
Grava com o músico canadense Bryan Adams a canção "Have You Ever Really Loved a Woman?" para o filme "Don Juan DeMarco", com Marlon Brando e Johnny Depp; Paco já tinha composto a trilha sonora do filme "O Traidor", de 1984, de Stephen Frears

2004
Ganha o prêmio Príncipe das Astúrias de artes como quem "transcendeu fronteiras e estilos para se tornar um músico de proporções universais"

2013
Volta a fazer show no Brasil depois de 16 anos

Colaborou JULIANA GRAGNANI

Com as agências de notícias


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