Folha de S. Paulo


'12 Anos...' é visto por historiadores dos EUA como marco na questão racial

Cidade pequena do Meio-Oeste norte-americano. Outono de 2013. A pré-estreia gratuita do filme "12 Anos de Escravidão" atrai uma população que não tem muitos recursos para ir ao cinema.

Há muitos negros. Eles vibram nas cenas de embate do herói, Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), contra os brancos. Aplaudem, reagem com revoltados murmúrios nas cenas de tortura.

Nessa mesma cidade dos Estados Unidos, duas semanas depois, agora numa sessão paga, num imponente teatro local, a plateia é de brancos. Reações nas cenas de luta? Nenhuma. Já a tortura fazia muitos virarem a cara. Na cena final, de reencontro do herói com a família, muitas lágrimas.

Francois Duhamel/Divulgação
Chiwetel Ejiofor e Michael Fassbender em cena do filme
Chiwetel Ejiofor e Michael Fassbender em cena do filme

As duas cenas dizem muito de como os EUA, país ainda polarizado com relação à questão racial, têm sido impactados por "12 Anos de Escravidão". O filme, que estreia hoje no Brasil, conta a história de um negro livre de Nova York que, em 1841, é vendido como escravo para trabalhar no sul do país.

Favorita a vários Oscar (foi indicada em nove categorias), a produção tem sido celebrada por críticos e historiadores norte-americanos como um marco na história da escravidão no cinema.

Primeiro, porque não havia até agora tantos casos. Entre os mais significativos, estavam "O Nascimento de uma Nação" (1915), de D.W. Griffith, em que os negros eram tratados com inferioridade, o clássico "...E o Vento Levou" (1939), em que eram vistos de forma caricata, a série "Roots" (1977) e, mais recentemente, "Amistad" (1997), de Spielberg, e "Django Livre" (2012), de Tarantino.

"É pouco, trata-se de um assunto que ainda é difícil de debater e enfrentar nos EUA. Tínhamos o tabu de acreditar que apenas o movimento negro possuía o monopólio da narrativa sobre esse período. O grande mérito do filme é globalizar a discussão", diz à Folha o professor de estudos africanos da Universidade de Michigan Fernando Arenas.

De fato, o filme é dirigido por um britânico (Steve McQueen), mas tem atores de origem africana, latino-americana, alemã, além de norte-americana. "É notável como isso joga uma nova luz e transforma a chaga da escravidão em algo a ser discutido de forma global", diz Arenas.

A crítica de cinema do "New York Times" Manohla Dargis disse que "12 Anos..." "não é o primeiro filme sobre a escravidão, mas pode ser aquele que finalmente faça com que seja impossível para o cinema norte-americano continuar a vender as mentiras que vem contando por mais de um século".

Editoria de Arte/Folhapress

O filme não só mostra a tortura e a violência de forma inédita e explícita, também tem o mérito de expor a crueldade em seu cotidiano e o modo como as relações se construíram nas fazendas com base na sobrevivência.

O professor de Princeton Pedro Meira Monteiro, brasileiro, ressalta o mérito do filme em mostrar como "o dia a dia era feito de negociações e de aproximações em relação ao poder dos senhores e à condição dos pares, lembrando o debate historiográfico no Brasil, que só a partir do final dos anos 80 começou a considerar a escravidão como um sistema paternalista em que o escravo é um agente no interior da dominação, e não apenas uma vítima".

Para Monteiro, faz falta um "12 Anos..." no Brasil, "como também faz falta um Tarantino que resolva jogar com a questão racial".

O debate sobre a "glamourização" da escravidão, mais ou menos nos moldes como a do tratamento da pobreza em filmes como "Cidade de Deus" (2002), no Brasil, também tem ocorrido nos EUA.

Em "12 Anos...", há um tratamento artístico primoroso da reconstrução de época. Mas é com relação ao encerramento, que coloca Northup em conflito com seu próprio suposto "final feliz", que há mais divisões. Se ele é salvo, o que dizer dos tantos que continuaram escravos?

"Há uma boa resolução para algo que, na vida real, ficou em aberto do ponto de vista da documentação. Não sabemos como Northup voltou a se relacionar com a família e com o país. Há a sugestão de que foi algo conflitivo, do mesmo modo como continuou sendo a história dos negros nos EUA até hoje", completa Arenas.

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO
DIREÇÃO Steve McQueen
PRODUÇÃO EUA/Reino Unido, 2013
ONDE Cidade Jardim e circuito
CLASSIFICAÇÃO 16 anos


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