Folha de S. Paulo


Alfonso Cuarón, vencedor do Globo de Ouro de melhor diretor, discute seus filmes

Em entrevista a uma rádio, não muito tempo atrás, Alfonso Cuarón comparou seus filmes a ex-mulheres: ele se sente grato, deseja tudo de bom a eles, mas não tem vontade de voltar para uma visita. O que ele não disse, mas poderia ter dito, é que essas ex-mulheres em nada se parecem.

Cuarón é um cineasta importante, mas sua reputação se baseia em uma obra pequena e eclética, com longos intervalos entre projetos, em alguns casos: dois filmes baseados em livros infantis ("A Princesinha" e "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban"), uma refilmagem de um clássico de Dickens ("Grandes Esperanças"), um filme sobre o despertar sexual, passado no México ("Y Tu Mamá También"), uma ficção científica distópica ("Filhos da Esperança") e, claro, "Gravidade", seu filme mais recente e de maior sucesso, que vem sendo apontado como candidato ao Oscar e se passa quase totalmente no espaço exterior.

Lucy Nicholson/Reuters
O diretor Alfonso Cuarón, Globo de Ouro de melhor diretor por
O diretor Alfonso Cuarón, Globo de Ouro de melhor diretor por "Gravidade"

Quem estudar com atenção os filmes de Cuarón detectará certas preocupações recorrentes — a consciência de classe, da vasta distância entre os afortunados e os excluídos, por exemplo— e até mesmo algumas marcas registradas em termos de técnicas de filmagem. Ele adora tomadas longas em traveling, como Hitchcock, e as arrasta até que o espectador o sente como que perder o fôlego, como se estivesse tentando segurar a respiração pelo maior tempo possível. Mas seria perdoável, à primeira ou mesmo segunda vista, imaginar que homens diferentes dirigiram "Gravidade" e "E Sua Mãe Também".

"Um diretor que respeito certa vez me disse que eu era pendular demais, e que precisava encontrar meu centro", Cuarón comentou em uma conversa em Nova York, algum tempo atrás. "Mas faço o que sinto ser certo para aquele momento. Não entendo que isso seja uma falha". O cineasta reflete por um instante, e sorri: "Mas, por outro lado, quase todos os diretores que admiro tem uma temática constante, um fio comum, em sua obra".

A lista de diretores que Cuarón admira é longa, excêntrica e fortemente inclinada ao cinema de arte: Bresson, Murnau, Lubitsch, Wilder, Tanner, Kubrick, Coppola, Spielberg. Ele descobriu o trabalho de todos eles, bem como o de alguns diretores poloneses, tchecos e russos que a maioria de nós não conhece, durante sua adolescência na Cidade do México, onde toda sua família, especialmente a mãe, amava o cinema. (Carlos, o irmão de Cuarón, também é cineasta, e o mesmo vale para seu filho Jonás, co-roteirista de "Gravidade").

O diretor de câmera Emmanuel Lubezki, conhecido como "Chivo" ("bode", em espanhol), trabalhou em quase todos os filmes de Cuarón e é um de seus mais antigos amigos. Ele se lembra de Cuarón, na adolescência, cercado de meninas lindas na saída de um cinema e discorrendo sobre o uso da cor por Pasolini. "Não sei se era tudo inventado ou não, mas soava bem", disse Lubezki em conversa recente. "Alfonso assistia a três ou quatro filmes por dia. Eu conhecia um filme de Godard. Ele conhecia todos. Conhecia todos os filmes de Buñuel".

Juntos, Lubezki e Cuarón entraram na melhor escola de cinema de seu país, a da Universidade Nacional Autônoma do México, no começo dos anos 1980. Cuarón diz que os dois se comportavam como "fedelhos arrogantes". Por fim, abandonaram o curso, porque consideravam que a escola era muito antiquada. A verdadeira educação de Cuarón aconteceu no trabalho, um longo aprendizado na televisão e cinema mexicanos, ocupando todos os postos imagináveis —eletricista, assistente de iluminação e câmera, operador de câmera, operador de som.

"Era evidente para todo mundo, exceto ele, que Cuarón um dia seria um grande diretor", diz Lubezki. Mas Cuarón, 52, amadureceu tardiamente, de certa forma, e a estranheza de seu currículo cinematográfico deve muito ao acaso. "A Princesinha", por exemplo, caiu em seu colo na metade dos anos 1990, quando ele tinha perdido quase toda esperança de uma chance como diretor. Ele leu o romance de Frances Hodgson Burnett, que não conhecia, e percebeu na hora que era algo que seria capaz de adaptar. "Foi um daqueles momentos da vida em que alguma coisa vibra em sua mão", recorda Cuarón.

"Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban" também surgiu em seu caminho inesperadamente. Ele tampouco havia lido o livro, até que seu amigo, o cineasta mexicano Guillermo del Toro, insistiu que o fizesse.

Mas a carreira de Cuarón no cinema também foi caracterizada por revezes e erros, alguns dos quais afortunados, outros não, e pela frustração com o sistema dos estúdios e até com a tecnologia do cinema. Conversar com ele deixa claro que Cuarón é um homem apaixonado, generoso e entusiástico. Mas todos concordam que também pode ser teimoso, impulsivo e obsessivo.

"Ele nunca aceita menos", diz Lubezki, "Nunca aceita momentos quase bons. Há horas em que você olha para ele e não sabe quem é aquele lunático".

Uma grande reviravolta na carreira de Cuarón aconteceu com seu segundo longa, "Grandes Esperanças", ou, como ele o chama, "o filme ruim". Adaptação moderna do trabalho de Dickens, estrelada por Gwyneth Paltrow e Ethan Hawke e lançado em 1998, o filme na verdade é visualmente bonito. A principal fraqueza é o roteiro pífio de Mitch Glazer. "Mas o roteiro era minha responsabilidade", aponta Cuarón. "É um filme que fiz pelos motivos errados. Estava envolvido demais na maquinaria" —na leitura de roteiros, nas reuniões, na busca de astros. Ele e Lubezki também concordam, hoje, em que se deixaram entusiasmar demais pelas questões técnicas —iluminação, guarda-roupa, ângulos de câmera.

"Era como fazer um filme industrial", diz Lubezki. "A sensação era a de ir à fábrica todos os dias".

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Em 'Gravidade', Sandra Bullock interpreta astronauta que tenta sobreviver após ficar à deriva no espaço
Em 'Gravidade', Sandra Bullock interpreta astronauta que tenta sobreviver após ficar à deriva no espaço

O filme seguinte de Cuarón, "E Sua Mãe Também", que ele co-escreveu com seu irmão Carlos, foi uma virada consciente de rumo: é mais solto, mais sacana, mais pessoal e, em termos de feeling, mais mexicano do que qualquer coisa que ele tenha feito, antes ou depois. "O filme tem um ponto de vista muito dramático, muito específico", diz Alejandro González Iñárritu, outro diretor amigo de Cuarón, sobre "E Sua Mãe Também". "É sobre nós, sobre o nosso país. Sobre uma infância da qual todos compartilhamos".

"E Sua Mãe Também" foi filmado quase todo em planos gerais, sem closes, e Cuarón gosta de pensar nele como um filme que dispensa tecnologia. "Eu disse a Chivo que precisávamos recomeçar", explicou Cuarón. "Precisávamos fazer o filme que faríamos antes da escola de cinema —antes que aprendêssemos a filmar e nos tornássemos obcecados demais com o acabamento de cada coisa".

De "E Sua Mãe Também" para "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", o salto não poderia ser maior. Afinal, este último não só era uma grande produção de estúdio como o terceiro título em uma série imensamente lucrativa, com elenco já definido e uma história que requeria efeitos computadorizados mas não nus frontais, ao contrário do filme precedente de Cuarón. Seu retorno às grandes produções é um pouco mais fácil de compreender se você souber que o filme que Cuarón planejava fazer em seguida, "'Filhos da Esperança', era uma produção de baixo orçamento, adaptação de um romance de P. D. James sobre um futuro no qual os seres humanos inexplicavelmente perdem a capacidade de se reproduzir. Ele escreveu a adaptação quanto estava rodando "E Sua Mãe Também", mas não encontrou interessados em produzir o filme.

"Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", em geral considerado o melhor, se não o mais lucrativo, dos filmes da série, permitiu que Cuarón enfim realizasse "Filhos da Esperança" e, indiretamente, tornou possível a filmagem de "Gravidade". Ele insiste em que jamais havia planejado um épico espacial. Estava trabalhando em mais uma produção independente de baixo orçamento, desta vez escrita em parceria com seu filho Jonás, quando no meio do caminho os arranjos de financiamento foram cancelados de uma forma que tanto surpreendeu quanto irritou Cuarón, que acreditava que seu trabalho na série Harry Potter lhe havia valido mais credibilidade.

"Todo mundo ficou sem entender como algo assim podia acontecer com Alfonso", disse Lubezki. "Foi um choque. Alfonso tem seus rompantes, às vezes, e depois do que aconteceu ele disse 'que se dane o mercado independente! Vou fazer um filme enorme em Burbank!"

O dinheiro para "Gravidade" surgiu rapidamente, especialmente porque Angelina Jolie estava escalada originalmente para estrelar a produção. Mas para Cuarón, o filme deveria ser simples. "Foi um erro de cálculo", disse Lubezki. "Ele me disse que filmar com um ator só, no espaço —nada poderia ser mais simples, e que poderíamos terminar o trabalho em dois meses".
O projeto requereu quatro anos e meio, especialmente porque, ao escolher o espaço como cenário do filme, Cuarón não se incomodou em considerar como ia filmar a ausência de gravidade. "Outro grande erro de cálculo", disse Lubezki, rindo. "Ele não fazia ideia. Nas mesmas circunstâncias, qualquer diretor, qualquer ser humano, teria desistido".

Em lugar disso, depois de um longo processo de tentativa e erro, Lubezki e Cuarón desenvolveram um sistema imensamente complicado que envolvia animação computadorizada, milhões de lâmpadas LED piscando, e aprisionar Sandra Bullock e George Clooney em uma câmera de isolamento por horas a fio. "Alfonso tinha todos os motivos para ficar insano durante a filmagem, por conta de todas as variáveis", escreveu Bullock em uma mensagem de e-mail. "Mas ele nunca se abalou. No seu DNA não existe neurose".

Insistindo que o que realmente faz "Gravidade" funcionar são os atores, especialmente Bullock, Cuarón agora parece um pouco ambivalente quanto ao avanço técnico que criou. "Se você precisa fazê-lo, que seja, mas o melhor é não inventar tecnologias novas", ele disse, acrescentando, imediatamente que "Murnau, você sabe, era um diretor muito mais tecnológico do que as pessoas imaginam".

O sucesso de "Gravidade" o apanhou de surpresa, Cuarón acrescentou, e não deixou muito tempo para pensar sobre o que fazer em seguida. "Sou preguiçoso", ele disse. "Gosto dos meus filhos. Gosto da vida. Não me incomodaria fazer dois ou três filmes em seguida. Não me incomodaria em nada. Mas não sei se sou capaz".

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI


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