Folha de S. Paulo


Lei nazista impede devolução de obras de arte

HALLE, Alemanha -- Wolfgang Büche ficou surpreso quando, em novembro, uma aquarela apreendida pelos nazistas em um pequeno museu do qual ele é curador em Halle, cidade do leste da Alemanha, ressurgiu, como parte de um vasto acervo encontrado em um apartamento de Munique.

Mas sua empolgação ao ver o trabalho, "Paisagem com Cavalos", um possível estudo para uma pintura do expressionista alemão Franz Marc em 1911, se viu temperada por um fato que ele define como "irrefutável": a lei de 1938 que autorizou os nazistas a apreender o quadro --e milhares de outras peças de arte moderna classificadas como "degeneradas" porque Hitler as via como tendo natureza judaica ou não germânica-- continua em vigor até hoje.

Autoridades alemãs acreditam que 380 obras confiscadas de museus públicos alemães sob essa lei da era nazista podem estar entre os 1.200 quadros, litografias e desenhos encontrados no apartamento de Cornelius Gurlitt, 80, filho de um marchand da era nazista.

Reuters
12 das 25 obras divulgadas no início do mês pelo governo alemão; elas fazem parte do 'tesouro de Munique'
12 das 25 obras divulgadas no início do mês pelo governo alemão; elas fazem parte do 'tesouro de Munique'

A existência da lei torna improvável que o museu de Büche ou dezenas de outros museus da Alemanha possam reivindicar a restituição de suas obras, dizem especialistas em questões judiciais e autoridades alemãs.

E é provável que a lei continue em vigor.

Os nazistas venderam milhares de obras no mercado aberto de arte para encher os cofres do país durante a guerra.

Revogar ou reformar a lei de 1938 poderia colocar em questão uma rede intrincada de transações de arte envolvendo essas obras, que vêm sendo negociadas em todo o mundo desde então, algo que até mesmo muitos curadores de museus, como Büche, preferem não ter de encarar.

Nenhum governo alemão tentou repelir essa lei da era nazista. "A situação legal é relativamente óbvia e clara", disse Büche, que supervisiona a coleção da Fundação Moritzburg, em Halle. "Só podemos recomprá-las de volta".

De fato, as obras confiscadas dos museus públicos alemães estão em categoria separada das obras de proprietários privados judeus que foram confiscadas ou que seus donos foram forçados a vender. Os herdeiros desses proprietários ainda podem ter direito legal às peças em questão.

Mas, para museus como o de Büche, o percurso legal é muito mais complicado. Além disso, se Gurlitt for capaz de provar que herdou as obras legalmente, elas bem podem continuar a ser sua propriedade, a não ser que surja um acordo com o governo.

As autoridades alemãs estão sendo criticadas pela condução do caso --especialmente por terem mantido segredo durante dois anos sobre a descoberta das obras. Há dúvidas se elas têm ou não direito a confiscar a coleção completa. Gurlitt não foi acusado de crime algum.

O promotor estadual de Augsburg, Baviera, onde o caso está sendo conduzido, declarou recentemente que instaria o grupo de trabalho apontado para esclarecer a proveniência da coleção a informar rapidamente a ele que peças pertencem irrefutavelmente a Gurlitt, para que possam ser restituídas ao proprietário. Gurlitt deixou claro que as quer de volta.

Büche, o curador, também gostaria de ter de volta as peças de seu museu.

Mas, em suas três décadas no museu Moritzburg, ele só pôde celebrar o retorno de 16 itens do pré-guerra, um décimo da coleção que no passado esteve entre as mais impressionantes do país.

Algumas das peças que pertenceram ao museu hoje integram o acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, depois de serem negociadas no mercado aberto.

Há quem advirta sobre as implicações mais amplas de anular a lei de 1938. "Se essa lei for anulada, então todas as transações teriam de ser anuladas", diz Sabine Rudolph, advogada especialista em restituição de arte.

"Se um museu que reconhece um trabalho na coleção de Gurlitt insistir em tê-lo de volta, seus dirigentes podem perceber de repente que têm em seu acervo diversas obras que um dia pertenceram a outros museus e que eles também teriam de restituir."


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