Folha de S. Paulo


Autorretratos digitais, 'selfies' se tornaram um fenômeno cultural de massa

De Neymar ao papa, de Gisele às meninas Obama, o mundo aderiu à "selfie". Você, mesmo se não associar o nome à coisa, já fez a sua.

Segundo o dicionário Oxford, a palavra traduz a fotografia que a pessoa tira de si mesma com um smartphone ou webcam e publica na internet, em redes sociais como Facebook ou Instagram.

No Instagram, a mensagem é 'estou gripado, apenas me ame'

Foi eleita a palavra de 2013 pelo mesmo dicionário pela alta de 17.000% em seu uso no período de um ano.

Mas a mania vem de longe. A expressão teria sido cunhada em 2002 pelo australiano Nathan Hope, ao publicar na rede uma foto de sua boca costurada após uma noite de bebedeira. À rede de TV australiana ABC, ele negou ser o pai do neologismo e afirmou que era apenas uma gíria usada na época.

Mas o que chama a atenção, mais que a origem ou o uso da palavra, é como o ato em si virou hábito.

Até a conclusão desta edição, a hashtag #selfie havia sido usada 58 milhões de vezes no Instagram. Entre os lusófonos, a prática se estende à hashtag #eu, com 2,5 milhões de usos.

Podem ser closes do rosto ou fotos de corpo inteiro; em situações invejáveis, como um passeio de barco sobre o mar azul, ou até num cenário fúnebre, caso de um velório.

É comum, entre os mais jovens e celebridades de todo o mundo, o hábito de publicar várias selfies em sequência, quase como se o sujeito escrevesse uma autobiografia.

Adepto do autorretrato digital, o ator Luiz Pacini, 38, afirma que gosta de se recriar. "Eu uso meu Instagram para interpretar, fotografo várias personas durante o meu dia a dia", diz.

Pacini publica fotos como a de um banho em um dia de calor no Rio ou uma série de diferentes barbas e bigodes.

"Não tem a ver com ego, é mais um lance artístico mesmo", avisa.

A estudante de letras da UnB Bárbara Gontijo, 19, também praticante, aponta a necessidade de aprovação como chave para entender o apelo da selfie. "Eu nunca tive a autoestima muito boa. Tiro as fotos e publico as que ficam boas. As pessoas curtem e me sinto melhor."

AUTOAFIRMAÇÃO

A psicóloga coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicologia e Informática da PUC-SP, Rosa Maria Farah, vê o fenômeno como um desejo de alcançar algum destaque e ter reconhecimento.

Para ela, o lado positivo da selfie é que pode funcionar como um exercício de autoafirmação. O lado ruim é a pessoa não ter ideia do que a publicação representa.

"A tecnologia não criou nada de novo no ser humano. Ela só amplifica o que cada um tem para oferecer", diz Farah, que ressalta o óbvio narcisismo da mania. "Há pessoas encantadas consigo mesmas, com sua imagem e seu desempenho."

Outra possibilidade de explicação é o desejo do povo de se parecer com seus ídolos. "As figuras públicas são adotadas como referência, mesmo que de forma inconsciente", acredita a psicóloga.

Para Adriana Guzzi, pesquisadora de semiótica da Escola do Futuro da USP, a selfie funciona quase como uma extensão da memória: o que se vive é legitimado quando publicado na rede.
"Você tem o registro e tem o controle de edição. É uma coisa nova", afirma.

Guzzi acredita que o hábito da selfie pode ser nocivo se ficar automático. "Se você ficar preso a ter que fazer e deixar de curtir, não vale", diz.

O autorretrato faz parte de uma tradição na arte. Surgiu como gênero forte na pintura flamenga no século 15, em trabalhos de pintores como Jan van Eyck (cerca de 1390-1441), e ultrapassou os séculos até chegar na ironia da fotógrafa americana e modelo de si mesma Cindy Sherman, 59.

"A representação desses autorretratos tinha a ver com a criação do personagem do artista ou a afirmação da nobreza da atividade da arte, que era grandiosa", diz o crítico Tiago Mesquita.

Para Mesquita, é difícil ligar as selfies à tradição do autorretrato. "Pode ter uma relação com o trabalho de Andy Wharol, a ideia de que você existe como você e como personagem também, uma espécie de esquizofrenia de se recriar como imagem."

O fotógrafo de moda Jacques Dequeker afirma que a onda da selfie é algo natural, seja qual for sua finalidade. E aconselha usar o celular o mais distante que o braço conseguir e de cima para baixo, pouco acima do rosto. "Basta criatividade."

Craques em selfie sabem bem o efeito da dica: o retratado parecerá mais magro.


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