Folha de S. Paulo


Tinha que ser num domingo de manhã

Triste para todos, mas legal para a história do rock que a morte de Lou Reed tenha sido divulgada neste domingo, uma vez que a primeira canção de seu primeiro álbum se chama justamente "Sunday Morning" (manhã de domingo).

Lançada em março de 1967 com sua banda The Velvet Underground, apadrinhada pelo artista Andy Warhol, a canção é uma crônica de paranoia, uma descrição do sentimento de desesperança que acomete os baladeiros que viraram a noite de sábado acompanhados de bebidas e de drogas. E, ao se dirigirem para sua camas no início da manhã, são flagrados pelo sol de domingo começando a brilhar. "Cuidado! O mundo está atrás de você", canta Reed no refrão.

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Lou Reed, 71, foi um dos grandes da música popular do século passado, ao lado de Jagger e Richards, Lennon e McCartney, Neil Young e Bob Dylan. Mas sua obra floresceu no medo, no pântano e no horror, nunca na alegria do rock. Suas músicas refletem, ou melhor, escancaram todos os tabus de que Reed conseguiu lembrar. Drogas, perversões sexuais, travestismo, o que quer que deixasse as pessoas desconfortáveis.

Há muito tempo o nova-iorquino Velvet Underground é considerado o grupo "mais influente que menos vendeu" de todos os tempos. Em seus quatro discos com Reed (o último, "Loaded", é de setembro de 1970), a banda se notabilizou em destilar venenos.

Uma pequena lista:

"I'm Waiting for the Man" (1967) - "Estou esperando pelo meu homem, Vinte e seis dólares na minha mão/ Me sinto doente e sujo, mais morto que vivo/ Estou esperando pelo meu homem", aguardando a chegada do traficante.

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"Heroin" (1967) - "Quando eu coloco a agulha nas minhas veias/ Me sinto como o filho de Jesus/ Heroína, ela é minha mulher, é minha vida".

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"Sister Ray" (1968) - O tabu aqui é no formato, apesar de descrições fortes de uso de drogas e sexo entre homens. É uma canção inaudível, "dezessete minutos de violência", disse Reed certa vez. Conta-se que o engenheiro de som não aguentou a chatice e abandonou a sala de gravação no 13º minuto para tomar um ar.

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"After Hours" (1969) - "Se você fechar a porta, a noite poderia durar para sempre/ Deixe a luz do sol lá for e diga oi para o nunca/ Todos dançando e se divertindo, eu gostaria que isso pudesse acontecer comigo".

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"Who Loves the Sun" (1970) - "Quem ama o sol?/ Quem liga se ele faz as plantas cresceram?/ Quem se importa?".

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Em 1972, já sem os companheiros do Velvet Underground, lançou dois discos solo. O segundo, produzido por David Bowie, é sua obra-prima, trazendo "Vicious", "Satellite of Love" e duas outras que merecem citação:

"Walk on the Wild Side" (1972) - O passeio pelo lado selvagem da vida traz cinco histórias bem ao estilo do compositor: "Holly veio de Miami, Flórida/ No caminho raspou as pernas e ele virou ela." Outros trechos falam de prostitutas, agiotas e drogados em geral.

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"A Perfect Day" (1972) - Talvez o ponto alto da poesia de Reed, unindo melancolia, desconforto e, caso raro, alguma dose de esperança: "Um dia simplesmente perfeito/ Beber sangria no parque/ e mais tarde, quando escurecer vamos para casa/ Um dia simplesmente perfeito/ Dar comida aos animais no zoológico/ E mais tarde, um filme/ E depois, casa".

Mas aí chega o refrão e entra o fator Lou Reed: "Um dia simplesmente perfeito/ Você me fez esquecer de mim/ Eu até pensei que fosse outra pessoa/ Uma pessoa boa...".

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Tendo desenvolvido uma obra tão forte em seus primeiros cinco anos de carreira, Lou Reed seguiu nos anos 1970 chutando as bolas de todo mundo. Fez aquele que foi chamado o "álbum mais depressivo da história", "Berlin" (1973), e também o que foi considerado "o pior já lançado", "Metal Machine Music" (1975), disco duplo com quatro lados de barulhos metálicos e nenhuma canção.

Fez ainda uma série de canções, lançadas ao longo dos anos, homenageando amigos, todos supostamente travestis: "Stephanie Says", "Lisa Says", "Candy Says", "Caroline Says 1" e "Caroline Says 2".

Pode-se dizer que os anos 1980 de Lou Reed foram perdidos até 1989, quando sua carreira foi ressuscitada pelo disco "New York", uma compilação de músicas declarando amor por sua cidade.

O álbum foi muito bem recebido pela crítica e público e lapidou um estilo mais próximo do rock baixo, bateria e guitarras. Além disso, é quando seu estilo de cantar falado fica ainda mais falado - mas curiosamente se encaixa melhor nas composições e causa menos estranheza. Talvez porque as melodias de "New York" fossem mais simples, sem tantas mudanças de notas ao estilo Beatles do começo de sua carreira.

O novo fôlego trouxe uma reaproximação com os velhos companheiros do Velvet, que voltou a excursionar e ganhou um álbum ao vivo em 1993, "MCMXCIII".

A estranheza de suas escolhas ("minhas cagadas são melhores que os diamantes de outros", disse certa vez) seguiu até o fim. Em 2005, seu "The Raven" (o corvo) se debruçava sobre a obra do escritor Edgar Allan Poe. E, há dois anos, "Lulu" trazia sua colaboração com a banda de heavy metal Metallica.

Não nos esqueçamos: "Cuidado! O mundo está atrás de você."


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