A relação entre o professor João Vargens, 61, e a tradição árabe foi estabelecida de maneira inversa, com a linha familiar apontando na direção futura. "Não tenho ascendentes árabes", afirma à Folha. "Mas tenho um descendente árabe, um filho gerado em Damasco", brinca.
O professor, nascido no Rio e de família portuguesa, recebe hoje em São Paulo o Prêmio Internacional Rei Abdullah para Tradução na categoria "esforços individuais". A premiação celebra uma carreira que, no caso de Vargens, começou não por sangue ou família, mas pelo interesse pela cultura árabe.
Durante a adolescência, o professor leu as histórias de "O Homem que Calculava", sobre um matemático no século 13, em Bagdá. "Fiquei fascinado pelos contos", diz. "Também comecei a me interessar por questões políticas, como a palestina, e quis conhecer a cultura árabe."
Rony Maltz/Folhapress | ||
Professor brasileiro João Vargens na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão |
O caminho, nas palavras dele --e talvez da maior parte dos alunos da língua--, é "árduo, longo e sem fim". Vargens formou-se em 1974, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Fui licenciado na primeira turma formada, que tinha dois alunos", recorda o acadêmico.
Vargens é assim parte de uma espécie de "velha guarda" da tradução árabe no Brasil, constituída em geral pelos professores da UFRJ e da USP. "Somos uma dezena lutando contra dificuldades."
A pesquisa na área, ainda em pequena escala no Brasil, é uma oportunidade para que alunos encontrem seu nicho acadêmico. "Qualquer contribuição para os estudos árabes no país é relevante", diz. "A carência é grande."
REVOLTADOS
A tradução do árabe começou no Brasil, brinca o professor, "como questão de polícia". Em 1835, escravos muçulmanos revoltaram-se em Salvador. Diante de documentos ininteligíveis e da ausência de tradutores, as autoridades brasileiras enviaram papéis para Paris para serem compreendidos.
A chegada de imigrantes sírio-libaneses e a fundação dos centros de estudos árabes da UFRJ e da USP, porém, alteraram o panorama.
Como pioneiro desses estudos, Vargens estudou dois anos em Damasco (1978 e 1979) e lecionou por três anos em Tetuán, no norte do Marrocos (1992-1994), onde publicou em um jornal local.
Em 2007, o professor fundou a editora Almádena para a divulgação da cultura árabe. Cerca de 15 livros foram publicados, incluindo um dicionário árabe-português.
Premiado por sua contribuição, Vargens nota porém que a carreira acadêmica é feita a partir dos estudos anteriores e dos colegas. "Os esforços individuais fazem parte dos esforços coletivos."
Nesse sentido, acadêmicos têm promovido um contato mais próximo com universidades portuguesas. Há uma associação luso-brasileira de estudos árabes em formação.
Mas a situação do campo no Brasil "continua tímida", afirma a professora da USP Safa Jubran, tradutora de obras como "Porta do Sol" (Elias Khoury). "A USP é o único lugar do Brasil com movimento amplo de tradução."
Ali, professores como Mamede Jarouche, Michel Sleiman e Miguel Attie cobrem um panorama que inclui as obras clássicas e as modernas, em prosa e em poesia.
"Mas tradutores que conhecem bem ambas as línguas, suas culturas, tradições e realidades ainda são poucos", afirma Jubran, que em geral traduz literatura contemporânea árabe.
A academia aposta em uma nova geração formada pelos centros de estudos da UFRJ e da USP. "São alunos que estão se formando tendo a tradução como meta", diz.