Folha de S. Paulo


Análise: Vinicius poeta deixou a culpa para assumir o erotismo

Praticamente 50 anos se passaram desde "Eu fui feliz nesse passado grato/ Viviam então em mim forças que já me faltam" até "Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é mais embaixo... E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia. Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...".

Os primeiros são versos de "O Caminho para a Distância", de 1933, primeiro livro de Vinicius de Moraes, então com 20 anos, e os últimos fazem parte da letra da canção "Testamento", escrita em 1980, ano de sua morte.

Popular, mas desprezado por acadêmicos, Vinicius de Moraes faria hoje cem anos
Página oficial de Vinicius de Moraes ganha hoje uma nova versão
'Black Orpheus' será lançado na Broadway só com atores negros
'Arca de Noé' é relançado com novas vozes
Crítica: Caixa de 20 CDs mostra como parceiros renovaram obra de Vinicius

Se fosse possível condensar a obra de um autor tão múltiplo como Vinicius em poucas frases, seria algo como um poeta que caminha do modo subjuntivo para o modo indicativo ou da velhice na direção da juventude.

Sua primeira poesia oscila entre o romantismo e o simbolismo, com versos quase eróticos, mas sempre castigados por um cristianismo culpado e, àquela altura, muitas vezes anacrônico, embora o poeta acompanhasse uma tendência de que também faziam parte Jorge de Lima, Murilo Mendes e Cecília Meireles, entre outros.

Aos poucos, entretanto, Vinicius caminhou da atmosfera dolorida e etérea do subjuntivo --o modo das hipóteses, da impossibilidade-- para uma afirmação cada vez maior do mundo solar, do modo indicativo --das afirmações e possibilidades.

A religiosidade e a culpa se converteram em erotismo assumido e em liberdade criativa --possíveis reversos da mesma moeda. O que não mudou foi seu imenso talento, tendo escrito alguns dos mais memoráveis sonetos da poesia brasileira, como o "Soneto da Fidelidade" e o "Soneto do Amor Total". O amor --proibido, medroso, erótico, fraterno e até ideológico-- foi seu tema central e não seria exagero chamá-lo de poeta brasileiro do amor.

José Miguel Wisnik mostra como, no poema "Balada das Meninas de Bicicleta", já se pode ler, como numa bola de cristal retrospectiva, a bossa-nova e a "Garota de Ipanema": "Ó transitórias estátuas /Esfuziantes de azul /Louras com peles mulatas /Princesas da zona sul".

A "garota que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar" alegra e entristece o poeta, ao lembrá-lo da beleza e da fugacidade do amor e do tempo. As garotas passam, os poetas envelhecem, mas ficamos nós com seus poemas subjuntivos e indicativos, que permanecem.

NOEMI JAFFE é doutora em literatura brasileira e autora de "A Verdadeira História do Alfabeto" (Companhia das Letras).

*

O CREPUSCULAR E O SOLAR
Trechos de dois poemas de diferentes fases de Vinicius

"Senhor, Eu Não Sou Digno"
Para que cantarei nas montanhas sem eco
As minhas louvações?
A tristeza de não poder atingir o infinito
Embargará de lágrimas a minha voz.

"Soneto de Fidelidade"
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento


Endereço da página:

Links no texto: