Folha de S. Paulo


Alvo de censura, Márcia X tem obra iconoclasta revista em livro

"É interessante pensar a impossibilidade das instituições de incorporar uma produção que tem carga pornográfica. Como o público vai ver um monte de pirocas depois de ter visto Monet?"

Quem pergunta é Márcia X, performer carioca morta em 2005, aos 45 anos, de câncer, antes de a resposta chegar.

Sua obra, de tão censurada e perseguida, ficou anos fora do radar até ressurgir com força numa mostra no Museu de Arte Moderna do Rio, no ano passado, e agora em livro organizado por Beatriz Lemos, que documenta todas as suas performances.

São quase 600 páginas de textos e imagens, só disponíveis em bibliotecas e centros culturais, já que o volume --financiado pela Funarte-- não pode ser vendido em livrarias.

Divulgação
Instalação 'Desenhando com Terços', da artista Márcia X, que está em livro recém-lançado sobre sua obra
Instalação 'Desenhando com Terços', da artista Márcia X, que está em livro recém-lançado sobre sua obra

Não deixa de ser, no entanto, um esforço louvável de dissecar a obra de Márcia X, que será sempre lembrada por usar terços para desenhar contornos de pênis em uma obra mostrada há sete anos no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, e que foi removida depois de grande pressão da comunidade católica.

Também por aparecer nua, só coberta com plástico transparente, num shopping do Rio. E por criar uma bacanal com bonequinhos de bebês, ou usar pênis de sex shop estilizados numa instalação.

"É claro que eram trabalhos que iam despertar uma reação", diz Ricardo Ventura, viúvo da artista. "Ela mexia com barris de pólvora."
primeiro confronto

Ou com "tabus muito fortes da nossa sociedade", nas palavras do poeta Alex Hamburger, que também foi casado com Márcia X. Ele estava lá, aliás, quando ela teve seu primeiro confronto público.

"Eu lia poemas e ia cortando partes da roupa, que era de plástico transparente com manchas vermelhas nas partes íntimas", diz Hamburger. "Foi um problema com a polícia, chegaram a apontar uma arma para a gente."

Dias depois do episódio, em 1986, Márcia X mandou uma carta de desabafo a um colunista do"Jornal do Brasil" que não entendera a ação.

"Já não é a primeira vez que vejo citada de forma incorreta a performance", escreveu a artista. "Ninguém sabia o que significava performance. Agora, a imprensa se ocupa em dizer que isso é a última moda, demonstrando que a situação evoluiu da ignorância completa para uma confusão diluidora."

É uma confusão que persiste. Museus e galerias lidam ainda hoje com o paradoxo de uma obra de arte que não tem presença física -uma ação efêmera, que a princípio não tem valor de mercado.

"Performance era uma coisa que não entendiam", diz Hamburger. "Só depois que nos separamos, em 1992, ela passou a incorporar objetos à obra, como coisas de sex shop. Até eu fiquei chocado."

Filha de pai militar e mãe ultracatólica, Márcia X também chocou a família com sua obra de teor iconoclasta.

"Um artista sempre trabalha com suas obsessões", afirma Ventura. "Sua obra infantilizava o mundo adulto e erotizava o mundo infantil."


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