Folha de S. Paulo


'Rejeitei Marlon Brando', relembra em entrevista atriz Claudia Cardinale

Não há nada que Claudia Cardinale odeie mais que ficar parada, mas pelos dois últimos meses é isso que vem sendo obrigada a fazer. Ela quebrou o pé em uma viagem de férias à Tunísia e desde então está imobilizada em seu apartamento em Paris. "Foi idiota", ela diz, com sua voz rouca, tipicamente mediterrânea. "Eu estava jogando vôlei. Gosto de me manter ativa, e por isso passar dois meses sem sair é terrível. Eu tinha muitos lugares a visitar, e tive de recusar: Veneza, Kiev, Osaka. Agora estou bem. Ontem saí de casa pela primeira vez, mas o tempo estava horrível".

Cardinale é uma sobrevivente da era em que gigantes do cinema percorriam o planeta --a maioria dos quais ao lado dela. Mas enquanto antigos astros como John Wayne, Burt Lancaster, Marcello Mastroianni e Brigitte Bardot estão aposentados ou morreram, Cardinale continua a caminhar, apesar dos acidentes de vôlei. Aos 74 anos, ela já fez mais de 135 filmes em uma carreira de 60 anos de duração, e continua a aceitar dois a três papéis por ano. Além disso, sua atuação em clássicos como "8 ½", "O Leopardo", "Era uma Vez no Oeste" e "Fitzcarraldo" a mantém sempre ativa no circuito de festivais.

"Não quero parar!", ela ri. "Isso é fantástico, continuar trabalhando". O que a leva a continuar? Ela volta a rir. "Não sei".

Graças à sua longevidade, Cardinale é hoje um banco de dados sobre fofocas da era dourada do cinema. John Wayne e Rita Hayworth? "Ele era tão grande, e ela tão bonita. Ela interpretou minha mãe e ele meu pai [em "O Mundo do Circo" em 1964]. Você acredita?" E "A Pantera Cor de Rosa"? "Peter Sellers não conversava com ninguém. Sempre no canto, bem o oposto do que você vê no filme. Blake [Edwards, o diretor], era fantástico. Maluco. E adoro malucos".

Menciono Tony Curtis, com o qual ela estrelou "Não Faça Ondas", uma comédia cujo cenário era a Califórnia. "Ah, incrível! Quando foi isso, mesmo?" Estamos conversando pelo telefone, e ouço o barulho de papéis sendo vasculhados. "Tenho um monte de papéis com tudo anotado", ela diz. "Senão esqueço as datas". Ela vasculha, vasculha. "Ah, si, oui. Foi logo antes de 'Era Uma Vez no Oeste'. Oh, sim, 1968. Nós rodamos... meu Deus, não me lembro".

Mais fresco em sua memória está "O Artista e a Modelo", do espanhol Fernando Trueba, uma história contemplativa e langorosa centrada em um escultor semiaposentado (interpretado pelo veterano ator francês Jean Rochefort), que vive nos Pireneus durante a Segunda Guerra Mundial. Cardinale interpreta a leal mulher do artista, que um dia acolhe uma jovem espanhola que vagueia pela região e sugere que ela pose para seu marido. Inevitavelmente, a combinação entre o sol do Mediterrâneo e a beleza da modelo restaura o espírito criativo de Rochefort. Cardinale só tem algumas cenas no filme, mas continua a exalar a mesma vivacidade e calor que ostentava em sua juventude.

ATRIBUTOS FÍSICOS

Previsivelmente, Rochefort e Cardinale já haviam trabalhado juntos no passado --em um filme de aventuras de 1962 chamado "Cartouche", em companhia de Jean-Paul Belmondo. O "New York Times" expressou aprovação ao desempenho dela no filme em termos libidinosos: "Um sorriso rápido e intenso, uma voz sensual e rouca, e o senso de humor da atriz amplificam os atributos físicos que os trajes ciganos da personagem não escondem".

Não é um desserviço atribuir a esses atrativos físicos parte do crédito pelo sucesso de Cardinale. Uma geração de cinéfilos que cresceram no pós-guerra se deixou encantar por sua voluptuosidade intensa, seu corpo sinuoso, seus "olhos de cama", suas longas madeixas castanhas. Ela personificava o glamour da Europa do pós-guerra e assim era retratada, na tela e fora dela. É quase como se ela tivesse recebido como missão o seu sex appeal.

Cardinale não planejava ser atriz. A carreira dela começou depois que ela venceu um concurso de beleza no qual não se havia inscrito. Aos 18 anos de idade, ela foi avistada em meio aos espectadores e escolhida como a mais bela jovem italiana da Tunísia (o país em que cresceu). O prêmio era uma viagem ao festival de cinema de Veneza, onde ela recebeu propostas de trabalho de muitos produtores de cinema. Inicialmente, ela rejeitou todas. "É como com um homem", diz. "Quando ele está atrás de você, se você disser sim de imediato ele logo perderá o entusiasmo. Se você disser não, ele a desejará por muito tempo."

Mas havia outro motivo além desse. Cardinale estava grávida, e poucos meses depois daria à luz um filho. Ela jamais revelou a identidade do pai, mas disse a uma revista francesa que foi estuprada. Por fim, aceitou os convites do produtor Franco Cristaldi, que a manteve sob contrato por 18 anos --e se casou com ela. Sob a orientação dele, Cardinale foi transformada na resposta italiana a Brigitte Bardot. A vida dela era estritamente controlada: não só os papéis que interpretava, mas seus penteados, peso, vida social. O mundo foi informado de que o filho de Cardinale era seu irmão mais novo, e o menino foi criado pela família da atriz.

Já faz 50 anos que Cardinale se tornou uma grande estrela, com dois clássicos italianos: "8 ½", de Fellini, e "O Leopardo", de Luchino Visconti. Nos dois, ela foi escalada como um objeto de desejo idealizado, quase inatingível. No filme de Fellini, ela interpreta uma estrela de cinema muito requisitada, uma etérea musa. No de Visconti, ela é uma beleza do século 18, objeto da luxúria tanto do aristocrata decadente interpretado por Burt Lancaster quanto da de seu sobrinho, Alain Delon.

Cardinale rodou os dois filmes ao mesmo tempo, saltando da visão modernista de Fellini sobre Roma, filmada em branco e preto, para a suntuosa recriação da Sicília do século 19 por Visconti. "Federico me queria loira", ela diz. "Luchino me queria morena. Com Fellini, não havia roteiro --era tudo improviso. Quando ele estava filmando, todos os atores queriam assistir, porque era mágico. O estúdio era como um circo, pessoas gritando ao telefone. Ele não conseguia filmar sem barulho. Já com Visconti era o oposto, quase como fazer teatro --muito sério."

Pelo final de 1963, "8 ½" já havia conquistado o Oscar de melhor filme estrangeiro, "O Leopardo" ficou com a Palma de Ouro do Festival de Cannes e "A Pantera Cor de Rosa", no qual ela interpretava uma princesa sedutora e embriagada, estava se tornando um fenômeno mundial. Não era só o público que queria Cardinale, porém. Sempre houve rumores sobre seu envolvimento romântico com amigos e astros, como Steve McQueen, Belmondo e Delon, mas ela é famosa pelo sigilo que guarda sobre sua vida pessoal. O único pretendente que ela admite é aquele com o qual não se relacionou: Marlon Brando.

Ela diz que a culpa foi sua, por dizer a todo mundo, quando primeiro chegou a Hollywood, que Brando era seu ídolo. Uma noite ele foi procurá-la. "Ele disse algo sobre sermos ambos de Áries. Era muito charmoso e divertido. Eu o rejeitei. Mas quando fechei a porta disse a mim mesma que tinha sido muito idiota."

FILMES HORRÍVEIS

Cardinale conseguiu escapar ao seu contrato e se divorciou de Cristaldi em 1975. Nos anos 70 e 80, fez muitos filmes horríveis e gravou alguns álbuns ainda piores de disco music, mas envelhecer e deixar para trás o papel de mito sexual parece ter sido quase um alívio para ela.

Cardinale diz que nunca quis o glamour. "Quando era moça, queria conhecer o mundo. E conheci." O cinema foi apenas o passaporte, e a despeito das demandas do patriarcal sistema dos estúdios, ela conseguiu preservar sua alma. "Jamais fiz cenas de nudez e jamais fiz algo que mudasse meu rosto. Não gosto disso, nem um pouco. Gosto de ser o que sou, porque não há como parar o tempo."

Ela continua a conhecer o mundo. "Depois de 'O Artista e a Modelo', fiz um filme com Manuel de Oliveira. Ele tem 103 anos, você acredita? Antes, fiz um filme na Itália, e também filmei em Nova York com um diretor muito jovem. Depois fiz outro filme na Áustria com outro diretor muito jovem, e o mais recente foi 'Effie', um filme britânico com Emma Thompson."

"Effie", que está em pós-produção, conta a história do escritor vitoriano John Ruskin e sua jovem mulher. "Foi em Veneza. Estava muito calor, e filmamos com roupas de época, pesadas. Não podíamos comer, não podíamos ir ao banheiro. Nada!"

Ela ri. Depois de dois meses de imobilidade, Cardinale está claramente ansiosa para voltar ao trabalho. "Tenho três roteiros para ler esta semana", diz. "Gostaria de começar a me mexer de novo."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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