Folha de S. Paulo


Fotografias de estrangeiros que retratam o 'novo' Brasil reforçam clichês

No novo Brasil, cabem todos os clichês do velho, aquele "país tropical, bonito por natureza", "terra boa e gostosa", com coqueiros que dão coco e o Cristo de "braços abertos sobre a Guanabara", a praia indefectível onde uma arquetípica "morena vai sambar, seu corpo balançar".

É esse tipo de imagem, de belos corpos ardendo na praia, favelas pacificadas ao som do batidão do funk e flagras de miséria estetizada que dominam ensaios recentes de fotógrafos estrangeiros na tentativa de documentar o país em tempos de euforia.

Não faltam assuntos para encher os olhos desses artistas -da ascensão de uma nova classe média nos anos Lula e Dilma às mudanças trazidas pelas unidades pacificadoras aos morros cariocas, passando pelos preparativos faraônicos para a Copa do Mundo e a Olimpíada.

Mas o que seria esse novo Brasil, como se refere ao país um ensaio da premiada agência holandesa Noor, não vai além daquele velho registro à moda de "Cidade de Deus", cores berrantes na favela tropical, ou maquiagem da pobreza que se torna plástica.

São tão vendáveis as imagens que os editores da Noor disseram que só facilitariam o contato da Folha com seus fotógrafos caso o jornal decidisse comprar as fotografias para ilustrar essa reportagem.

Sem acordo, as imagens que ilustram esta página são de outros autores, mas não diferem muito da tônica de sol, samba, mulher e favela.

Ou, nas palavras de Boris Kossoy, fotógrafo e professor da USP, um cozidão de "futebol, peitos, bundas, macumba e policiamento pesado".

"Essa é uma questão cíclica, que sempre volta com novas roupagens", diz Kossoy. "Certos clichês acompanham a visão interna que temos do país. É um olhar oportunista ou repetição colonizada daquilo que se quer ver no exterior. É um conteúdo exótico para o consumo de idiotas."

David Alan Harvey, norte-americano que acaba de lançar um ensaio sobre o Rio, diz que busca exagerar mesmo todos os clichês que vê desfilar diante de sua objetiva.

"Não me preocupo com clichês, já que eles são todos verdadeiros", diz Harvey. "Vejo o Rio como um grande palco. Parece um anfiteatro em que as montanhas descem suaves até o mar e todo o drama humano de ricos e pobres se encontra na praia."

Nos morros pacificados, o belga Frederik Buyckx, que teve uma menção honrosa no último World Press Photo, um dos prêmios mais importantes do fotojornalismo, fez um registro plástico e pouco jornalístico da favela.

Lá está um homem com asas tatuadas nas costas a fitar o morro, funkeiros tomando cerveja e garotos disputando uma pelada diante de barracos tão polidos e iluminados que não fariam feio em qualquer edição da Casa Cor.

"Não quero imagens agressivas ou negativas", diz Buyckx. "Talvez por ter trabalhado com publicidade, minhas imagens são mesmo muito estéticas, bonitas, seguem um pouco a moda."
vício perigoso

Mesmo quando o cenário é outro, e a suavidade do Rio dá lugar ao caos paulistano, prevalecem exageros que perturbam o olhar mais crítico.

Carlos Cazalis, fotógrafo mexicano que já morou no Brasil, retratou em tons sombrios a realidade das ocupações urbanas na metrópole. Há sempre um céu ameaçador, e o cinza domina quase todas as suas composições.

"São Paulo é mesmo uma cidade cinza", diz Cazalis. "Existe uma paleta que quis exaltar para marcar o que significa viver nessa cidade."

Embora o curador Diógenes Moura veja nessa série um "tiro certeiro", que mostra as metrópoles como de fato são, outros críticos, como Iatã Cannabrava, organizador do festival Paraty em Foco, alertam para o que entende ser um "vício perigoso" no exagero de alguns fotógrafos.

"É a volta dos clichês", diz Cannabrava. "Essa é uma avaliação simplista que tem origem econômica e colonial, um comportamento danoso para a imagem do Brasil."

E também um possível desvio do que seria uma imagem documental. Na opinião de Boris Kossoy, exemplos desse fotojornalismo um tanto edulcorado atestam o surgimento do que ele chama de "documentação produzida".

"São imagens encenadas e preparadas de coisas já cansadas", diz Kossoy. "O interesse documental que havia em décadas passadas foi se desviando nos últimos tempos para uma produção de forte cunho estético, que pode virar propaganda falsa."


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