Folha de S. Paulo


Ciclo de debates reflete sobre a vida e a arte em um mundo sem silêncio

Foram usadas quase 25 mil palavras na apresentação do programa "Mutações -- O Silêncio e a Prosa do Mundo".

Trata-se de um ciclo de debates que quer refletir sobre as consequências de se viver num mundo tão barulhento.

Fotógrafo Lucas Lenci traduz em imagens sensação silenciosa; veja fotos

"Nunca se falou tanto e se pensou tão pouco", afirma o professor de filosofia e editor Adauto Novaes, criador do ciclo Mutações, evento que começou ontem, no Rio, e será aberto hoje em São Paulo.

Novaes baseia sua afirmação em uma pesquisa feita pelo Centro da Indústria de Informação Global, da Universidade da Califórnia, segundo a qual foram trocadas 10,8 trilhões de palavras nos Estados Unidos em 2008, o que representa aumento de 140% em relação aos 4,5 trilhões de palavras usadas em 1980.

Para chegar ao número, os pesquisadores usaram amostragem de textos de jornais, revistas, páginas da internet, áudios de filmes em cartaz, programas de TV e rádio e letras de músicas lançadas no ano. Os dados foram armazenados em um programa que conta o total de vocábulos.

Em contraposição a esse tsunami verborrágico, o evento abordará o silêncio como condição de pensamento, criação e expressão artística.

RUÍNA DA LINGUAGEM

O papel do silêncio na arte produzida a partir do século 20 é expressar a consciência da ruína da linguagem e lhe dar novo motor, segundo o professor de filosofia e colunista da Folha Vladimir Safatle, um dos palestrantes. "Uma língua que não consegue se silenciar não consegue se reinventar."

Mas o silêncio é um animal em extinção, acredita Pedro Duarte, professor de filosofia da UniRio e autor de "Romantismo e Estética Moderna" (Zahar), que também participará do ciclo de debates.

"Nossa prosa contemporânea deve aprender a se relacionar com o silêncio para poder, em meio ao falatório insignificante, dizer", afirma.

Editoria de Arte/Folhapress

Ficar calado tem também seu lado pop. No ano passado, frequentadores de uma festa que ocorreu durante o festival de filmes de Sundance, nos Estados Unidos, foram proibidos de falar. A iniciativa da quietude durante o evento, chamado "Silence is Golden" (o silêncio é de ouro), foi da artista sérvia Marina Abramovic.

Dois anos antes, em 2010, ela havia usado o artifício em uma performance no Museu de Arte Moderna de Nova York: passou três meses em completa mudez, sentada diante de desconhecidos, que chegavam a chorar.

A moda (ou a busca) do silêncio também chegou à indústria cinematográfica, que nos últimos dois anos ressuscitou os filmes mudos.

O site Global Language Monitor, que classifica as palavras mais faladas em várias áreas de negócios, identificou "silêncio" como o substantivo top de Hollywood em 2011, ano de lançamento de "O Artista" (filme mudo do francês Michel Hazanavicius), vencedor de cinco Oscars em 2012.

Muitos artistas modernos já se debruçaram sobre o tema. O músico John Cage (1912-1992), o videoartista Bill Viola e o diretor Bob Wilson, todos americanos, usaram o silêncio como estratégia "para despoluir a percepção", na interpretação do professor de teoria do teatro e estudioso e praticante do budismo Cassiano Quilici.

O uso deliberado do silêncio recupera a ideia de que tudo aquilo que é muito sublime exige quietude. "É quase um elemento teológico no interior da experiência da vanguarda estética", diz Safatle.

"Nas artes tradicionais podemos citar a poesia haikai e o teatro Nô, em que o exercício meditativo cria as condições para a experiência criativa", diz Quilici.

REFLEXÃO E CRIAÇÃO

O papel do silêncio como condição para reflexão e criação é outro aspecto que será discutido nos debates do Mutações. "O pensamento é silencioso, é um diálogo íntimo que não consegue viver no meio do som sem significado", diz Francis Wolff, professor de filosofia na École Normale Supérieure (Paris).

Num mundo barulhento, portanto, pensa-se pouco. Isso é uma das causas da redescoberta de práticas contemplativas e outros exercícios que valorizam o silêncio, afirma Quilici.

O silêncio promove momentos de contemplação, inexistentes hoje, afirma Olgária Mattos, professora de filosofia da USP e outra palestrante: "Ele devolve o tempo que nos foi roubado e nos ensina a compreender melhor os ruídos do mundo".

A literatura é uma das rotas para o silêncio e a contemplação, segundo Mattos. "O narrador esquece que está narrando, como aquele que ouve esquece de si mesmo."

A busca pelo silêncio perdido também pode ser notada na arquitetura moderna, em espaços pensados que são "recuos ao ruído da cidade" ou em representações visuais da quietude, como o jogo de sombra e luz do arquiteto japonês Tadao Ando, cita o arquiteto Guilherme Wisnik.

CICLO MUTAÇÕES
QUANDO a partir de hoje,
até 11/10
ONDE Sesc Vila Mariana
(r. Pelotas, 141; tel. 0/xx/11/5080-3000)
QUANTO R$ 8 por palestra

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Veja vídeos da obra "4'33", de John Cage, e da performance de Marina Abramovic no Museu de Arte Moderna de Nova York

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