Folha de S. Paulo


Judith Brito: biografia de Dirceu é pretexto para repensar a política

Li "Dirceu: A Biografia", do jornalista Otávio Cabral, na cadeira de praia de um resort baiano. A capa exposta como um outdoor, com a foto do famoso biografado, atraiu hóspedes e até um recepcionista do hotel, que vieram me consultar sobre a qualidade do livro. A todos recomendei a leitura --personagem folhetinesco embalado em bom texto-- e presenteei o simpático e interessado recepcionista com meu exemplar.

De fato, trata-se de um trabalho competente, objetivo e sem arroubos, baseado em entrevistas do autor (exceto com o próprio biografado), livros, matérias de jornais (principalmente desta Folha), revistas, blogs e filmes. O enredo evoca a história política recente, não apenas do personagem principal (ou dos personagens que ele assumiu ao longo da vida) mas também do Partido dos Trabalhadores e do próprio país, a partir dos anos 1960.

Mostra José Dirceu em três fases, que resumem sua trajetória de ascensão, glória e decadência: o papel de belo líder estudantil e depois guerrilheiro na clandestinidade (uma espécie de Che Guevara tupiniquim); o papel de figura-chave na articulação do PT, na eleição de Lula e como chefe da Casa Civil na primeira fase do governo (sempre de olho, ele próprio, na sucessão presidencial); e, enfim, já alijado do cargo oficial, o papel de lobista interessado em fazer fortuna pessoal, culminando com sua condenação como mensaleiro. Paralelamente, há ainda o Dirceu sedutor, numa sucessão de conquistas femininas (em geral, várias simultaneamente), incluindo a experiência surreal do casamento sob identidade falsa, após a transformação de seu rosto por meio de cirurgia plástica em Cuba.

No cenário montado a partir da segunda metade dos anos 1960 no qual José Dirceu tornou-se uma das principais lideranças estudantis, a bipolarização política foi facilitada pela intolerância da ditadura militar: inicialmente uma resistência de nicho (com manifestações principalmente de artistas, intelectuais, estudantes e militantes clandestinos), a oposição iria aos poucos se generalizar. As contestações reuniam sob um guarda-chuva de tênue unidade não apenas diversas linhas teóricas do marxismo mas também os menos afeitos a intelectualismos e mais "mão na massa", caso de José Dirceu (e depois o líder sindicalista Lula). Impetuoso, Dirceu cresceu em momentos como o da invasão do prédio da USP na rua Maria Antônia em 1968, e depois, na clandestinidade, como aprendiz de guerrilheiro em Cuba.

A segunda fase registrada no livro mostra a ascensão de Dirceu (e do PT) no cenário político oficial ao longo de 20 anos, que culminou com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. É um exercício de aprendizado político: após sucessivas tentativas frustradas, os líderes petistas entenderam a necessidade de abandonar o discurso raivoso da luta de classes e se render a propostas palatáveis à indispensável maioria eleitoral. Nesse momento, surge o "Lulinha paz e amor", e a divulgação da "Carta ao Povo Brasileiro" funcionaria como um calmante para as ansiedades da elite. O radicalismo deu lugar a pragmáticos compromissos de alinhamento com as anteriormente tão criticadas elites políticas tradicionais e com as regras da democracia representativa, o que rendeu várias defecções dentro dos grupos petistas mais ortodoxos. O PT (ou sua cúpula) ascenderia ao poder já tendo entendido que o Brasil é um país institucionalmente mais sofisticado (comparativamente aos pares latino-americanos), sendo portanto menos permeável a arroubos do tipo bolivariano.

Um dos pontos fortes do livro é mostrar a aliança entre o presidente Lula e o articulador Dirceu como um jogo complexo, em que o primeiro delegava e retirava poderes do segundo, de acordo com as circunstâncias (incluindo vistas grossas à montagem de esquemas heterodoxos), e o segundo se fortalecia como poder paralelo, de olho na sucessão presidencial.

Marlene Bergamo - 10.abr.2013/Folhapress
O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, tema de biografia lançada recentemente, em entrevista à *Folha*
O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, tema de biografia lançada recentemente, em entrevista à Folha

A ascensão do Partido dos Trabalhadores configurou uma mudança importante no perfil dos atores políticos no Brasil, trazendo à cena as classes médias e, em menor grau, as populares (trabalhadores sindicalizados, professores, funcionários públicos e de estatais etc); em contrapartida, esse movimento reduziu o espaço das classes mais ricas e elites tradicionais, como mostra o mais recente livro do cientista social Leôncio Martins Rodrigues ("Pobres e Ricos na Luta pelo Poder", no prelo), com base em pesquisa sobre dados parlamentares. No entanto, como se pode depreender dos fatos relatados no livro "Dirceu", a obstinação e o excesso de autoconfiança cobraram seu tributo: o governo petista, tendo em Dirceu sua mais completa tradução, enveredaria, como "novo rico" da política, pelo toma-lá-dá-cá escancarado do mensalão, com o objetivo de aprovar seus projetos e angariar fundos para o partido (em alguns casos, também para bolsos privados).

Quando o Executivo federal contrariou interesses de grupos com os quais havia estabelecido compromissos, descontentamentos levaram a denúncias e a uma sucessão de escândalos, com a perda de controle do processo político e, mais recentemente, as condenações pelo Supremo Tribunal Federal. Tendo Dirceu como fio da meada, esse momento de reversão da política nacional é retratado na parte final do livro. O dilema ético do PT não parece ser o da licitude do aparelhamento em prol do projeto partidário e socialista --afinal, até Abraham Lincoln (1809-1865) usou de pagamentos a parlamentares para aprovar o fim da escravidão na América.

O divisor de águas passou a ser o desvio para bolsos particulares, tema crucial no ainda polêmico assassinato do petista Celso Daniel, em 2002. O discurso oficial é o de que o PT fez o que outros partidos sempre fizeram, a arrecadação via caixa dois --como se isso não fosse ato de corrupção. Além disso, o fez de forma acintosa e quase institucionalizada, num momento em que a sociedade se tornava cada vez mais informada, conectada e talvez menos tolerante com o antigo "rouba, mas (às vezes) faz".

A POLÍTICA PÓS-DIRCEU

A trajetória de sucessos e fracassos de José Dirceu, sem dúvida fundamental na história política recente, permite a reflexão sobre as mudanças profundas ocorridas no país desde os anos 1960 e sobre os desdobramentos que estamos vivendo agora, com as novidades das manifestações nas ruas.

O primeiro ponto a ser destacado é o papel relevante dos jovens universitários dos grandes centros --que têm tempo, energia, espírito de corpo e inspiração ideológica--, em especial os de São Paulo e Rio, na fermentação e precipitação de movimentos políticos que se alastram e se tornam transformadores. Foi assim na ascensão de José Dirceu, quando o foco era a derrubada do regime militar (e, para alguns grupos, a implantação de um modelo socialista); depois, com os caras-pintadas, e agora, nos movimentos iniciados com o mote simples da redução de tarifas em transporte público, mas que se generalizaram num enorme espectro de reivindicações, por vezes contraditórias.

O segundo elemento de destaque é o esquerdismo genérico que mobiliza as contestações (desde antes dos anos 1960). A efervescência juvenil contestadora, compartilhada coletivamente, encontra ressonância no romantismo marxista, que identifica claramente heróis e vilões e promete o paraíso na Terra (o que, num mundo laico, é opção às abstratas e incertas promessas religiosas). Há uma crença de que, no fim da história, serão todos roussonianamente iguais e fraternos (a questão da liberdade talvez seja entendida como a liberdade de concordar com o ideário de esquerda, razão pela qual frequentemente alguns petistas voltam à tecla do controle social da mídia). A partir dessas premissas, o universo pode ser mais facilmente classificado entre bem e mal, certo e errado.

Esse esquerdismo (ao menos o de prateleira), que perpassa o ensino em muitas escolas públicas e privadas, é, no fundo, uma boa intenção --só uma das quais o inferno está cheio, como atestam as fracassadas experiências reais das ditaduras comunistas. É didático ao incluir um viés humanitário-cristão que faz a esquerda ser associada genericamente ao lado "do bem", do combate à injustiça, da defesa dos pobres e oprimidos.

Em contraponto, a democracia representativa não tem apelos de marketing tão claros, especialmente para jovens. Autodeclarar-se democrata é bastante comum, embora posicionamentos ideológicos individuais em geral sejam pouco consistentes (como mostram dados de pesquisas). O maior símbolo, a eleição, não é exclusividade do sistema democrático (mesmo ditaduras, como a cubana, se dão ao trabalho de preservar arremedos de procedimentos eleitorais), nem sua realização é suficiente para se configurar um regime democrático. Não é fácil marquetear um pacote complicado que inclui, além de eleições, processos formais de representação, sistemas de pesos e contrapesos, poderes autônomos, liberdade de expressão e de imprensa, respeito à diversidade etc. E a defesa desse pacote não pode prometer um paraíso, nem ao menos estabilidade (seria propaganda enganosa); no máximo, como disse resignadamente Winston Churchill (1874-1965), uma democracia forte será o menos pior dos modelos de convivência social.

O terceiro ponto relevante é o oposicionismo latente da população. O rápido processo de urbanização ocorrido no Brasil criou enormes contingentes de pobreza nas grandes cidades, que passaram a demandar ascensão social. A resistência gestada pelos jovens e intelectuais é absorvida pelos mais pobres como possibilidade de mudança, mais na esfera econômica do que na política. Há uma insatisfação crônica que se reflete em ondas de votos oposicionistas desde o processo de democratização: a rejeição ao regime militar incluía, especialmente entre os despossuídos, desejos de reversão de suas dificuldades econômicas, mais do que aderência à democracia. Seguiram-se decepções rápidas com os governos Sarney e Collor, e novas expectativas com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (que a elas respondeu parcialmente com a contenção da inflação) e com Lula (que enfatizou programas sociais). Tais movimentos de crédito a novos governantes e desgastes subsequentes alimentam a rejeição profunda à instância política, com destaque à via parlamentar, personificada pela velha elite vista como corrupta, e pela nova, que se corrompeu também.

Aos elementos anteriores, presentes há pelo menos algumas décadas, soma-se agora um quarto fator, a novidade da interatividade digital. Não se trata de mais uma forma de comunicação, na sequência de tantas outras surgidas ao longo do tempo. A revolução digital provoca a disrupção do modelo prevalecente em que a lógica da informação era unidirecional, do emissor para o receptor. Com a internet, todos são emissores e receptores, e os vetores de influência se multiplicam. Além disso, a velocidade e instantaneidade das comunicações não representam apenas mudança quantitativa, mas qualitativa. Tal novidade já mudou paradigmas em várias indústrias, como a editorial, da música, da mídia, das comunicações etc, e começa também a impactar os cenários políticos tradicionais.

A combinação dos elementos já existentes --o impulso estudantil, o esquerdismo e o oposicionismo latente exacerbado pelo desgaste da instância politica--, que favoreciam protestos organizados e com foco, com a novidade digital, dotada de meios interativos e muito mais rápidos para a mobilização, favorece protestos mais dispersos e desorganizados. O oposicionismo misturado à aspiração por ascensão social ganhou velocidade com a internet e as redes sociais. O que antes demorava anos e tinha lideranças e organização agora amadurece em questão de dias, numa explosão difusa de insatisfações que sai às ruas.

Os desafios são, portanto, cada vez maiores. Não seria fácil a qualquer governante administrar esse novo cenário, e mesmo as velhas raposas da política têm dificuldade em articular reações. Mas será particularmente complicado para quem não é um autêntico homo politicus, como é o caso da presidente Dilma Rousseff.

JUDITH BRITO é diretora-superintendente da Empresa Folha da Manhã S.A., que edita a Folha


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