Folha de S. Paulo


Mesa na Flip comenta Primavera Árabe e manifestações no Brasil

O escritor Milton Hatoum e o filósofo e colunista da Folha Vladimir Safatle substituíram na tarde deste domingo (dia 7) o poeta poeta palestino Tamim Al-Barghoutti durante palestra na Flip com o professor e tradutor Mamede Mustafa Jarouche.

Segundo a organização do evento, Tamim chegou a embarcar no Cairo, onde vive, mas, durante a escala em Londres, teve o passaporte extraviado.

A vinda de Tamim foi posta em dúvida quando, na última quarta, com o golpe militar no Egito, vários voos saindo do Cairo foram suspensos. O poeta chegou a dormir no aeroporto, mas, segundo a Flip, conseguiu embarcar entre quarta-feira à noite e quinta-feira pela manhã.

Antes do início da palestra, o crítico literário Ángel Gurría-Quintana leu uma carta que Tamim enviou à Flip, justificando sua ausência e pedindo desculpas ao Brasil.

"Fui capaz de chegar até Londres. No aeroporto, por uma distração minha ou talvez pela falta de sono nas três noites anteriores, meu passaporte foi perdido ou, possivelmente, furtado", disse em um dos trechos. Leia mais da carta do poeta.

Tamim Al-Barghouti ganhou notoriedade nos protestos que tomaram a praça Tahrir, no Cairo, em 2011, alertando: "Todo mundo que ficar em casa estará em perigo". Seu poema "Oh, Egito, Está Perto" virou hino da Primavera Árabe no Egito.

Danilo Verpa/Folhapress
Mesa Literatura e Revolução com Milton Hatoum, Vladimir Safatle e Mamede Mustafa Jarouche durante a Flip 2013 em Paraty
Mesa Literatura e Revolução com Milton Hatoum, Vladimir Safatle e Mamede Mustafa Jarouche durante a Flip 2013 em Paraty

PRIMAVERA ÁRABE

No começo da palestra, o mediador Arthur Dapieve pediu que os palestrantes comentassem a Primavera Árabe, onda de manifestações iniciadas em 2010.

Jarouche, por coincidência, estava no Egito fazendo pesquisas quando os protestos começaram no país - o presidente Hosni Mubarak acabou renunciando em janeiro de 2011.
Ele lembra que havia muita insatisfação entre a população, sobretudo pela extrema pobreza.

"Era um confronto entre a juventude e a polícia. Não foi apenas de jovens, mas o confronto físico foi da juventude basicamente", contou.

Jarouche estava em um hotel próximo às forças militares do Estado e teve que se mudar durante o conflito. Saiu carregando as malas no meio das barricadas. "Eu via franco atiradores atirando na população. Era uma coisa apavorante."

Um ano depois, Safatle visitou a região para ver as consequências dos protestos.

Ele percebeu uma extrema incomunicabilidade entre as culturas ocidentais e árabes. "Os jornais internacionais raramente ouviam opinião de professores da região. As narrativas sobre os impasses dessas sociedades eram fornecidas por pessoas de outras sociedades."

Para o filósofo, isso representa um bloqueio de narrativas perverso, que só reafirma preconceitos. "Essa experiência não é apenas do cinismo da política ocidental, mas também do fracasso da modernização econômica."

"Esses países [árabes] adotaram políticas econômicas ocidentais que resultaram em uma pauperização absoluta. E suas revoltas eram tidas como revoltas irracionais", completou.

Hatoum comentou ter dúvidas se os protestos árabes poderiam ser chamados de revolução e comparou-os às manifestações no Brasil.

"Alguma coisa está mudando por lá, como está mudando no Brasil, mas será que são mudanças estruturais ou só maquiagem?", questionou.

ARTE E REVOLUCIONÁRIA

Hatoum também comentou que a literatura não pode ser doutrinária.

"A doutrina passa pela repetição, pela eloquência, pela mensagem que se repete. A literatura não tem esse caráter doutrinário e nem explicativo."

Relembrando Graciliano Ramos, homenageado da Flip, comentou que "'Vidas Secas' é um romance sofisticado e acessível, tem um poder muito mais forte sobre a consciência social do que um texto simplesmente doutrinário".

No momento das perguntas da plateia, Safatle foi questionado sobre a crise na cultura brasileira na última década.

"Existe uma consciência cada vez clara que estes últimos anos de produção intelectual foram anos relativamente estranhos", reconheceu. Citou como exemplo o cinema nacional, que considera defasado em relação ao cinema latino.

Uma das razões, apontou, seria o modelo de financiamento da produção cultural no país, dependente da renúncia fiscal de grandes empresas.

"As decisões culturais são tomadas pelos diretores de marketing das grandes empresas. Isso gera algumas aberrações. Você vai impondo certos modelos culturais de acordo com o que os gerentes de marketing acham adequados."

"É necessário escapar desse tipo de situação para que a criatividade da cultura brasileira possa ser ouvida como deve ser ouvida", completou, sob fortes aplausos da plateia.

O mediador encerrou a palestra pedindo que Hatoum lesse uma crônica que escreveu para o jornal "O Estado de S. Paulo" em junho do ano passado. O texto, "Estádios Novos, Misérias Antigas", protestava contra a destruição de um estádio em Manaus, o Tartarugão - em seu lugar será construído um novo estádio para a Copa de 2014.

O escritor leu o final do texto, que antecipava o estado de espírito das atuais manifestações no Brasil.

"Mas agora é tarde. Sim, impludam todos os estádios! Construam obras colossais e faturem montanhas de ouro! Superfaturem tudo: desde a demolição até a pintura dos camarotes da CBF e patrocinadores! Joguem no entulho e nos esgotos a céu aberto a dignidade e a esperança do povo brasileiro. Enterrem de uma vez por todas a promessa de cidadania! Caprichem na maquiagem urbana e escondam (pela milésima vez) a miséria brasileira, bem mais antiga que o futebol. E quando a multidão enfurecida cobrar a dignidade que lhe foi roubada, digam com um cinismo vil que se trata de uma massa de baderneiros e terroristas. Digam qualquer mentira, mas aí talvez seja tarde. Ou tarde demais."

Após a leitura, o público aplaudiu de pé a mesa.


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