Folha de S. Paulo


Na abertura da Flip, Milton Hatoum homenageia "postura ética" de Graciliano

Com uma apresentação erudita, mas pouco dinâmica, o escritor amazonense Milton Hatoum, 60, abriu a 11ª Festa Literária Internacional de Paraty, na noite desta quarta (3), analisando as principais obras de Graciliano Ramos (1892-1953), o homenageado da Flip 2013.

Em linha com o título da palestra -- "Graciliano Ramos: Aspereza do Mundo e Concisão da Linguagem"--, destacou ainda a "postura ética irrepreensível" que marcou suas obras de cunho social e político.

"O olhar crítico para as iniquidades era agudo, sem laivo de sentimentalismo. A postura ética, que subjaz à visão crítica, está há anos-luz do cinismo, da indiferença, da alienação e da empáfia que ele criticou na figura de alguns personagens. Assim, igualava-se com humildade a Fabiano [de 'Vidas Secas' ], um herói diminuído, sem qualquer grandeza material ou intelectual."

Hatoum abriu sua apresentação com uma anedota bem-humorada, para pontuar o pessimismo turrão do homenageado. "Quando davam boa noite ao Graciliano, ele dizia: 'Você acha mesmo?'."

A partir daí, passou a ler a longa aula que havia preparado, misturando citações de trechos das principais obras do homenageado --como "São Bernardo", "Vidas Secas" e "Memórias do Cárcere" com interpretações e análises suas e de outros críticos. Também se debruçou sobre aspectos psicológicos do autor alagoano.

"Graciliano tinha fama de ser áspero e intratável como o cacto do poema de Manoel Bandeira, mas um cacto já se humanizando, como disse Murilo Mendes. Era afetuoso entre amigos e parentes e irônico quando se referia a si mesmo como tendo 'uma inteligência fraca, de matuto'."

Hatoum falou ainda sobre os célebres relatórios de prestação de contas que Graciliano escreveu quando foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL), entre 1927 e 1930. Marcados pela honestidade política e pela qualidade literária do texto, acabariam lhe rendendo o convite para publicar seus livros. "Não se trata apenas de uma mera composição burocrática coberta de cifrões. Nestes textos já aparecem os temas que seriam tratados em 'Vidas Secas', 'São Bernardo' e 'Infância'", disse o palestrante.

Em termos estilísticos, Hatoum lembrou que Graciliano usou os narradores de seus livros para "problematizar a questão da linguagem" e levou "ao extremo um projeto de inovação da linguagem".

"Graciliano acusa, pelo viés literário, o discurso falacioso e vazio de uns, e o discurso desarticulado de outros, ou nem isso, o silêncio e a perplexidade desses outros. Ele alcançou nos romances o equilíbrio entre o social, o psicológico e o político, e aprofundou as relações entre ficção e sociedade. Soube como poucos fundir a narração direta com a subjetiva e, assim, tornou mais complexa a relação entre os elementos imaginários e os dados da realidade."

O palestrante lembrou que esse estilo de narrativa "já havia sido usado por escritores europeus e também por [William] Faulkner", mas não era comum na literatura latino-americana da década de 1930.

"Para chegar a isso, Graciliano elaborou uma forma estética que diz muito e em profundidade sobre as injustiças que ainda persistem. Elaborou também uma linguagem de corte clássico, em que os registros popular, coloquial e culto são habilmente articulados no interior da narração."

Preso político durante o primeiro governo Vargas e militante comunista a partir de 1945, Graciliano não fez de sua literatura um instrumento partidário e doutrinário, segundo Hatoum. "A leitura de seus livros mostram que, antes da adesão ao comunismo, já havia a inconformada negação da ordem dominante e certa nostalgia de uma humanidade depurada, que formam o seu fundamental anarquismo. Acho que isso deve ser enfatizado, porque Graciliano nunca submeteu sua obra ficcional à propaganda ideológica. À semelhança de Machado de Assis, não escamoteou a verdade das relações humanas entranhadas no processo histórico. O resultado é uma ficção marcada pelo pessimismo em face à brutalidade da vida brasileira."


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