Folha de S. Paulo


Ficcionista bósnio lança livro de memórias sobre guerra e morte

"Quer saber o quanto meu marido gosta de futebol? Nossa filha Ella, de cinco anos, chama o [jogador argentino] Messi de 'tio Messi'", diz a editora de fotografia Teri Boyd sobre o autor bósnio radicado nos EUA Aleksandar Hemon.

Outro sintoma: Hemon está louco para jogar uma partida durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), da qual participa de uma mesa no sábado (6).

Crítica: Autor bósnio adota o inglês como instrumento de expressão

O interesse por futebol é um dos traços mais estáveis de uma vida repleta de sobressaltos, marcada pelas experiências traumáticas da guerra, do exílio e da morte -e narrada em livros permeados por delicadeza, humor e raiva, além de uma combinação de história e invenção.

Pedaços de sua experiência estão nos contos de "E o Bruno?" (2000) e "Amor e Obstáculos" (2009) e nos romances "As Fantasias de Pronek" (2002) e "O Projeto Lazarus" (2008), eleito pela revista "New Yorker" como o melhor livro de ficção do ano e finalista do National Book Award, todos lançados no Brasil pela editora Rocco.

Mais recentemente, escreveu sua biografia, ou melhor, suas biografias: na Flip, Hemon lança seu primeiro trabalho de não-ficção, "O Livro das Minhas Vidas", uma coletânea de suas memórias de Sarajevo, a cidade natal, e de Chicago, que acabou por se transformar em seu lar.

EXÍLIO

Em janeiro de 1992, dois meses antes do início da guerra da Bósnia, Hemon deixou Sarajevo rumo a Chicago para participar de um intercâmbio cultural promovido pelo governo dos EUA.

Três meses depois, ainda durante o programa, Sarajevo foi cercada. O pai o aconselhou a ficar longe e, assim, aos 27 anos, Hemon se viu transformado em um asilado político.

Depois de um início de choque cultural e sensação de não-pertencimento em Chicago, onde costumava andar a esmo nas horas livres e trabalhar em subempregos, Hemon mergulhou nos estudos da língua inglesa, entrou em uma pós-graduação na prestigiosa Universidade Northwestern e começou a escrever.

Em 1995, publicou seu primeiro texto em inglês. Menos de dez anos depois, em 2004, recebeu uma premiação de US$ 500 mil (cerca de R$ 1,1 milhão) da MacArthur Foundation, conhecida como "a bolsa dos gênios".

O prêmio, pago ao longo de cinco anos, permitiu que ele escrevesse mais dois livros. Daí em diante, Hemon passou a ser reconhecido como um dos melhores novos escritores de língua inglesa.

Passou a ser comparado ao russo Vladimir Nabokov por ter abraçado o idioma tardiamente e por ser um ávido usuário dos jogos de palavras.

"É lisonjeiro, claro, mas injusto com ele, que escreveu mais de 40 livros em dois idiomas. Até agora, escrevi cinco."

COMPREENSÃO

À Folha Aleksandar Hemon diz que usar os elementos de sua própria história na ficção foi a forma que encontrou para tentar compreender fatos aparentemente inexplicáveis de sua vida.
Após se casar com Teri Boyd, sua escolha "mais sábia", viveu seu evento mais trágico. Em 2010, descobriram um tumor teratoide no cérebro da filha Isabel, de nove meses. Isabel morreu três meses depois e a ela é dedicado "O Livro das Minhas Vidas": "Respirando para todo o sempre em meu peito".

"Entendo melhor o que vivi ao escrever sobre as experiências. Eu não escrevo porque sei de tudo e decido compartilhar com pessoas que não sabem. Na verdade, eu escrevo porque não sei. O processo me ajuda a entender o suficiente para formular perguntas interessantes que podem iniciar uma discussão com os leitores", diz.

MEMÓRIA MATURADA

Segundo ele, o processo de ficcionalização acontece quando o que viveu fica por tanto tempo na cabeça que acaba ganhando novas nuances, personagens e desfechos.

No caso da não-ficção, o escritor diz que precisa ser "pressionado" para produzir. "Sou preguiçoso para escrever não-ficção. Geralmente, conto histórias em eventos sociais e as pessoas sugerem que eu escreva sobre isso."

"O Livro das Minhas Vidas" nasceu assim, um apanhado de muitos desses textos, sendo que o primeiro foi escrito em 2000. Nele, Hemon (hoje com 48 anos) reúne desde cenas de sua infância socialista até a vida com a mulher e as filhas em Chicago.

Ao falar das filhas, invariavelmente sorri. Diz que Esther ainda é muito pequena (ela tem um ano), mas que já está ensinando Ella a jogar futebol. "Ela faz aula e corremos juntos. Ela controla a bola, o que para uma criança de cinco anos é fantástico", conta.

Se não conseguir jogar a pelada que tanto quer em Paraty, Hemon pode tentar assistir a uma partida no Rio de Janeiro, cidade que planeja visitar após a Flip.

"Estou muito animado para ir ao Brasil. Quem não gostaria? Li um livro sobre como o futebol afeta a vida das pessoas, do Alex Bellos ["Futebol: O Brasil em Campo", da ed. Companhia das Letras"], e quero reler na volta. Acho que vai me ajudar a entender o país melhor", afirma.

*

TRECHO

"O tumor de Isabel tornou tudo em nossa vida intensa e profundamente real. Tudo do lado de fora não era tanto irreal quanto desprovido de substância compreensível. Quando as pessoas que não sabiam da doença de Isabel me perguntavam quais as novidades e eu lhes contava, eu testemunhava seu rápido recuo para o horizonte distante de suas próprias vidas, onde o que importavam eram coisas inteiramente diferentes. [...] A continuação do mundo navegando calmamente dependia da linguagem de chavões e clichês funcionais que não tinham a menor lógica ou conexão conceitual com nossa catástrofe."

Extraído de "O Livro das Minhas Vidas", de Aleksandar Hemon


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