Folha de S. Paulo


Leia a entrevista completa com sociológo francês que lança livro sobre Foucault

Em "A Última Lição de Michel Foucault" (editora Três Estrelas), o professor de filosofia e sociologia francês Geoffroy de Lagasnerie, 32, examina o interesse de Foucault pelo neoliberalismo, expresso em seminário dado por ele no Collège de France, em Paris, em 1979 (tal como explica o texto "Foucault viu neoliberalismo como o novo", publicado na "Ilustrada").

Leia a seguir a íntegra da entrevista com Lagasnerie sobre o tema, publicada com exclusividade no site da Folha.

'Foucault viu neoliberalismo como o novo', diz escritor Geoffroy de Lagasnerie
Crítica: Autor recorre a Foucault, ícone da esquerda, para defender que ela se reinvente

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Folha - Em sua opinião qual foi a faísca que levou Foucault a ler os neoliberais? Ele estudou o tema a sério, como você demonstra, mas você acha que ele pode ter se aproximado do tema inicialmente como uma provocação?
Acho que a aproximação de Foucault ao tema tem de ser vista em conexão com sua tentativa de construir uma teoria não-marxista e o seu desejo de desenvolver uma esquerda não-marxista. Estas questões eram muito importantes para Foucault no contexto de sua crítica ao marxismo no meado dos anos 1970. Foucault talvez tenha sido um dos pensadores mais antimarxista e anticomunista da França ao longo desta década. Isso não significa, claro, que ele tenha tido alguma proximidade com a direita. Mas ele queria inventar, criar, imaginar como poderia ser uma teoria e uma prática radical não-marxista. É por isso que ele chegou aos liberais e neoliberais. Não para tornar-se um deles, mas para pesquisar o que eles inventaram, para estudar os novos sentidos que eles deram a conceitos clássicos como os de Estado, de dominação, de minorias, de sociedade, de espaço público e como eles poderiam ser úteis quando tentamos elaborar um ato de emancipação.

Mastrangelo Reino/Divulgação
O sociólogo francês Geoffroy de Lagasnerie, em seu escritório, em Paris
O sociólogo francês Geoffroy de Lagasnerie, em seu escritório, em Paris

Dos diversos insights de Foucault sobre neoliberalismo que você enuncia qual lhe parece o mais significativo?
Na minha opinião, Foucault considera que há uma relação entre o neoliberalismo e o pensamento crítico. E isso se deve aquilo que Foucault chama de "fobia do Estado" neoliberal. O neoliberalismo é imbuído do princípio de que sempre há governo demais. O pensamento neoliberal não começa pela existência do estado. Não tenta legitimar o estado ou a soberania política, como a filosofia política ou a teoria do contrato social. Pelo contrário, ele elabora uma nova questão política: por que é necessário o governo? Ou seja, o que faz do governo algo necessário?

Nesse sentido, não parece errado para mim dizer que Foucault considerou o neoliberalismo como uma das manifestações da tradição do pensamento crítico.

Numa conferência chamada "O que é a crítica", de 1978, Foucault define a crítica como uma atitude. Essa atitude crítica lida com a questão do poder. Foucault propõe como uma primeira definição de crítica essa caracterização geral: a arte de não ser governado demais. Penso que Foucault encontrou no neoliberalismo o mesmo tipo de clamor: "a arte de não ser governado" é um dos aspectos da atitude neoliberal. Em outras palavras, se a arte da insubordinação voluntária é o que caracteriza a atitude crítica, o neoliberalismo pode ser visto como um modo de pensamento crítico. A demanda ética de "não ser governado" explica a capacidade do pensador neoliberal de produzir análises interessantes sobre a questão do poder e da submissão.

Você compara a aproximação ao neoliberalismo feita por Foucault à crítica de Marx ao modo como os socialistas alemães atacaram o capitalismo. Considerando que Foucault, ele mesmo, vinha criticando Marx nesse momento você acredita que ele aprovaria seu comentário?
Claro que sim. Foucault criticava conceitos e teorias marxistas. Mas isso não significa que não houvesse então nenhuma inspiração de Marx. Afinal, um dos mais importantes insights de Foucault era que a teoria crítica deveria escrever a "história do presente": nós temos de entender o que está acontecendo agora, qual é a especificidade, a singularidade do nosso tempo presente, ao invés de todas as ilusões de uma continuidade histórica. Na minha opinião, Marx teria concordado totalmente com este ponto de vista. Sua análise do capitalismo e as rupturas que ela produziu são imbuídas dos mesmos exatos princípios, da mesma exata inspiração.

Como você explicaria a ideia de que, segundo Foucault, para os neoliberais a defesa da pluralidade é mais importante do que a da liberdade?
Acho que esta é uma das declarações mais importantes do meu livro. O conceito central da abordagem neoliberal não é, como se costuma pensar, o de liberdade. É, de fato, o de pluralidade. O valor da liberdade naturalmente desempenha um papel importante, mas é, com frequência, secundário. Em outras palavras, o neoliberalismo deve ser entendido como uma meditação sobre a pluralidade. A especificidade desse paradigma é o de nos forçar a questionar o que implica a vida numa sociedade composta de indivíduos ou grupos que experimentam modos de existência diferentes, que acreditam em valores contraditórios, e que são legitimados para fazê-lo. Nisso, o neoliberalismo desenha uma nova imagem da sociedade e das relações humanas. Ele desenha uma imagem de um mundo essencialmente desorganizado, um mundo sem centro, sem nenhuma unidade, sem coerência e significado. Em outras palavras, nenhuma sociedade.

Você concorda, pessoalmente, com Foucault que existe um aspecto criativo, teoricamente, no neoliberalismo e que essa não é uma teoria conservadora? Você acha igualmente que há algo de liberador, emancipador e de crítico?
Sim, totalmente. O neoliberalismo é uma maneira pouco usual de pensamento, que pode nos ajudar portanto a tomar certas distâncias. Não é uma teoria conservadora, ainda que tenham havido algumas ligações históricas entre os pensamentos neoliberal e conservador. O neoliberalismo não é uma agenda política no sentido concreto. É uma utopia, que se autodefine como contrária ao paternalismo, à ordem social, à autoridade política, ao Estado-Nação e à ideologia nacional. E eu acho que os meios pelos quais os pensadores neoliberais tentaram elaborar a reflexão sobre a sociedade, usando como valores-chave a desordem, a imanência, a heterogeneidade e a multiplicidade, mostram que há neles um potencial emancipador. E isso não significa que não possamos condenar os efeitos devastadores de algumas reformas neoliberais ou políticas.

Hervé Guibert
Michel Foucault em foto do escritor e fotógrafo Hervé Guibert de 1981, dois anos após seminário sobre neoliberalismo
Michel Foucault em foto do escritor e fotógrafo Hervé Guibert de 1981, dois anos após seminário sobre neoliberalismo

Por que você acredita que não existam, tal como você afirma, muitas linhas de interpretação do neoliberalismo e por qual motivo acha que é uma teoria tão pouco estudada atualmente?
Quando pensamos em neoliberalismo, nós imediatamente tendemos a associá-lo com alguns dos seus aspectos, os mais concretos, ou seja, com algumas reformas políticas que tem sido impostas a países de todo o mundo desde os anos 1980. Quando você fala em neoliberalismo, as pessoas escutam "desregulamentação", "livre mercado", "privatização", "competição" e assim por diante. Eu não nego que esses itens façam parte da agenda neoliberal. Mas eu diria que o ato de limitar o neoliberalismo a essas reformas políticas (que, é importante dizer, não são as únicas implicações políticas do pensamento neoliberal) tendem a esconder a complexidade desta maneira de pensar. Na minha opinião, o neoliberalismo não é só uma questão de ideologia ou uma doutrina econômica. É uma poderosa tradição filosófica. Hayek, Friedman, Gary Becker e outros são pensadores muito robustos, que tentaram elaborar uma "utopia", uma maneira de imaginar, que podem nos ajudar a pensar de modo diferente, a desafiar nossa falta de consciência teórica em diversos campos: filosofia, teoria social e política, criminologia. O neoliberalismo não é uma tradição muito comentada porque as pessoas pensam que elas já sabem o que é e o que devemos pensar sobre o tema. Meu livro tenta mostrar que este ainda é um modo desconhecido de pensar que temos de levar a sério, especialmente se queremos criticá-lo com propriedade.

O seu trabalho foi recebido raivosamente por admiradores de Foucault?
Sim, alguns dos estudiosos de Foucault, felizmente não todos, reagiram com raiva porque leram meu livro como se fosse "a favor" do neoliberalismo e se quisesse ter sustentado que Foucault poderia ter sido neoliberal. É um erro de compreensão muito claro da minha linha de pensamento. O ponto chave para mim é que, no mundo todo, a interpretação das conferências de Foucault sobre o neoliberalismo tendem a promover uma imagem bem confortável do intelectual como um crítico radical dos pensadores neoliberais. Mas na minha opinião, para entender os interesses de Foucault no neoliberalismo é necessário deixar de lado a questão "a favor" ou "contra" o liberalismo. Os textos de Foucault são estranhos e desafiadores precisamente porque eles não batem com nossas expectativas. Foucault não denuncia o neoliberalismo. Ele não adere à percepção espontânea dessa tradição como algo negativo. Ao revés, ele pensa que há algo de positivo no neoliberalismo. Foucault não apenas não rejeita o neoliberalismo como tenta entender o que ele produz, teoricamente e politicamente, e quais são seus efeitos, da mesma forma que Marx fez com o capitalismo. Em outras palavras, eu tento dar um novo sentido radical ao gesto de Foucault.

Você menciona que Foucault teve uma intuição de que o marxismo não era uma doutrina completa porque não era crítica o bastante. Quando ele começou a sustentar isso?
A ideia de Foucault era de que o marxismo era uma teoria insuficientemente crítica. Assim, estamos num contexto de uma reflexão sobre o problema da resistência, na condição de elaboração de uma crítica radical da ordem social: qual teoria permite que se entenda mais precisamente a mecânica do poder e que ela seja desestabilizada?

Certamente, o marxismo aparece, inicialmente, como uma teoria que permite a desafiar radicalmente as fundações do sistema econômico. Mas o problema essencial do marxismo não é o de ter desafiado a ideia de totalidade: ele aceitou completamente a ambição de construir uma visão unificada da realidade.

Em seu curso no Collège de France chamado "É preciso defender a sociedade", de 1976, Michel Foucault tratou dos "conhecimentos subjugados", isto é, aqueles conhecimentos que são julgados inválidos por teorias abrangentes. Ele menciona o marxismo e a psicanálise. Segundo Foucault, o marxismo tende a excluir um conjunto inteiro de conhecimentos locais. O marxismo foi um dos principais alvos dos movimentos emancipatórios dos anos 1960 e 1970. Foucault trata da insurreição dos conhecimentos subjugados que aconteceu no despertar de Maio de 1968, e escreve que o criticismo que foi desenvolvido durante aquele período pode ser descrito como o reaparecimento dos conhecimentos desqualificados e marginais, como os conhecimentos do paciente psiquiátrico, da enfermeira, do marginal, de todos os que Foucault chama de "conhecimento popular". Foucault vê a insurreição desses conhecimentos subjugados como uma revolta contra os efeitos da força que estão presos ao caminho no qual opera o marxismo.

Por que você pensa que Foucault decidiu não ser explícito a respeito de sua opinião a respeito do neoliberalismo?
Esta não é a questão. E não é relevante se entendermos corretamente o que Foucault tentou fazer. Ele usou a doutrina neoliberal como um teste, uma ferramenta crítica. "O Nascimento da Biopolítica" pode ser lido como uma espécie de auto-experiência. Em outras palavras, as avaliações do que é bom ou ruim, do que é verdadeiro ou falso não interessam aqui. E eu acrescentaria: nós temos de resistir a essas questões e à injunção que é sempre feita para respondê-las. A abordagem de Foucault é especulativa. Temos de suspender nossas avaliações políticas e os julgamentos normativos se queremos a possibilidade de pensar algo novo, de sermos desestabilizados pelo desconhecido. É uma tarefa muito difícil a de tentar pensar de outra maneira. A imaginação teórica não é dada. É uma prática que requer que não se pergunte o que é verdadeiro e falso para se concentrar no que é novo, o que é interessante, produtivo. Tem alguma relação com uma prática estética. É claro que isso não significa refutar a política.

Isso é o que Foucault tenta fazer quando analisa o neoliberalismo e é essa tarefa que eu tento cumprir, depois dele e com ele em meu livro.


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