Folha de S. Paulo


Análise: Briga entre sambistas traduz mudança no gênero em sua saída do gueto

Quando a turma do deixa disso entra em ação, costuma-se ouvir logo um "para com isso, é bobagem". No caso da briga, ou melhor, da famosa "polêmica" entre Noel Rosa e Wilson Baptista, o argumento não seria válido. A desavença musical não apenas não era bobagem como reencenava a própria invenção do samba moderno.

Até a aparição espetacular de Noel, lá por 1930, o samba era a música de um povo: filhos e netos de escravos ou negros livres chegados ao Rio da Bahia ou do entorno rural. E de um lugar: a Cidade Nova, ou Pequena África, bairro colado ao centro do Rio, de onde se espalharia por morros e subúrbios da cidade.

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Com a adesão irreversível de Noel, o samba iniciava o processo de tornar-se a música da cidade, de todos os brasileiros, a própria cara musical do Brasil. Mas começaram aí as primeiras desavenças, com a chegada de jovens de classe média, brancos, letrados a um ambiente marginalizado, negro, semiletrado, mas puro.

"Não tenho medo de bamba/Na roda de samba eu sou bacharel", já retrucava Noel num de seus primeiros sambas, "Eu Vou pra Vila".

O conflito, contudo, era mais latente que real, já que Noel deliberadamente tornou-se parceiro de sambistas negros de todos os redutos "puros", como Cartola, da Mangueira, ou Ismael Silva, do Estácio, compositor que formatou o samba moderno.

Ao provocar Noel com "Lenço no Pescoço", e reivindicar para a malandragem a prevalência no samba ("Eu sou vadio/ Porque tive inclinação/Eu me lembro, era criança/Tirava samba canção"), Wilson Batista reabre o conflito.

Ao chamar Noel de "Mocinho da Vila" e ameaçar um "deixe quem é malandro em paz", ele deixa claro que se trata de dar voz ao gueto.

Ao retrucar, em "Palpite Infeliz", Noel volta a propor o samba como a música de todos: "Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira/Oswaldo Cruz e Matriz/Que sempre souberam muito bem/Que a Vila não quer abafar ninguém/Só quer mostrar que faz samba também".

Desse conflito nasceram não apenas sambas geniais mas outros conflitos que agitam até hoje, como uma briga de rua, a criatividade musical brasileira. Da briga nasce o consenso.

HUGO SUKMAN é jornalista, autor de "Martinho da Vila - Discobiografia" (ed. Casa da Palavra)


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