Folha de S. Paulo


Governo do Irã vai processar os produtores e o diretor de 'Argo'

Enfurecido pelo filme "Argo", o governo do Irã vai processar os responsáveis pela produção e distribuição da obra que faturou o Oscar de melhor filme em 2012.

A escolhida para a missão é a advogada francesa Isabelle Coutant-Peyre, mulher e defensora do guerrilheiro venezuelano conhecido como Carlos, o Chacal, que aterrorizou o mundo nos anos 70 e 80 com ataques contra alvos do Ocidente e de Israel.

Em entrevista à Folha, Coutant-Peyre disse que o processo visa demonstrar que "Argo" é um instrumento de propaganda americana que incita ao ódio contra "a nação iraniana".

O filme narra a missão secreta que conseguiu retirar do Irã seis diplomatas americanos em meio à tomada da então Embaixada dos EUA, em Teerã, meses após a revolução islâmica, em 1979.

Coutant-Peyre, que também já defendeu a família do ex-ditador líbio Muammar Gaddafi e os pais do rapaz acusado de matar sete pessoas numa escola judia no sul da França em 2012, disse que seus clientes são vítimas políticas.

Em conversa de 40 minutos numa sala do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica do Irã, ela criticou o recém-empossado presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, por suspender a ajuda financeira a Carlos que era mantida pelo antecessor, Hugo Chávez, morto em março.

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Folha - Foi a senhora quem ofereceu seus serviços ao Irã no caso "Argo"?

Isabelle Coutant-Peyre - Eu não sou o tipo de advogado que sai oferecendo seus serviços. Não tenho uma visão comercial da profissão.

Estou em contato com a república do Irã há muito tempo. Começou quando eu tive que tratar um caso envolvendo o centro cultural iraniano em Paris, que havia sido fechado pelo governo francês, em 1986. Desde então nos falamos, embora de maneira esporádica.

[Os iranianos me] perguntaram se, no caso de "Argo", era possível ir além das declarações públicas condenando o filme. Comecei então a buscar um caminho jurídico, com a ideia de que um processo serviria como caixa de ressonância. É preciso restabelecer a verdade e deixar claro que o filme não passa de uma obra de propaganda.

Encontrei no direito francês uma possibilidade, que é uma queixa penal por incitação à discriminação e ao ódio contra a nação iraniana. Uma possibilidade seria explorar as mentiras históricas que contradizem a pretensão do filme de ser uma "true story" [história verdadeira] e de ter sido produzido com base em documentos desclassificados que lhe dão uma suposta credibilidade quase científica.

Temos vários depoimentos que contradizem o filme, inclusive por parte do [então presidente americano na época do sequestro Jimmy] Carter e dos embaixadores do Canadá e do Reino Unido em Teerã no momento dos fatos. Todos dizem que a CIA teve papel irrelevante na história, embora o filme seja feito à glória da agência americana. Dizem ainda que o retrato da população iraniana, apresentada como aterrorizadora, não corresponde à realidade.

Uma americana chamada Barbara Honeger, assessora da Casa Branca nos anos 80, está disposta a provar, com documentos, que o filme foi programado pela CIA. Ben Affleck é apenas o executor do projeto. No fundo não há grande novidade nisso. Todo mundo sabe que a CIA desde os anos 40 financia filmes de propaganda.

Existe um filme, pouco divulgado no exterior, que se chama "Unthinkable" [2010], que conta a história de um americano convertido ao islã que esconde três bombas atômicas no território dos EUA por ordem do Irã. O objetivo de um filme desses é claramente aterrorizar as pessoas e convencer as opiniões públicas que o Irã deve ser destruído.

Ou seja, o processo contra Argo será lançado em Paris?

O caminho que encontrei está no direito francês. "Argo" saiu de cartaz nos cinemas da França, mas continua sendo distribuído pela Warner por meio de venda de DVDs, inclusive em Paris, o que faz da cidade um lugar de competência jurídica para o processo. Na verdade, qualquer lugar onde o DVD for comercializado pode ser considerado local da ocorrência, mas a competência em processos internacionais geralmente está em Paris, mesmo que o requerente seja estrangeiro.

A ação penal permite ir além da Warner. Queremos apresentar queixa contra os senhores Ben Affleck, na sua condição de diretor, e George Clooney, na sua condição de produtor, e convocá-los até o local do crime.

Por outro lado, pode ser estrategicamente interessante abrir um processo nos EUA também. Estou esperando retorno de colegas advogados americanos para ver o que é possível fazer. Há outra possibilidade na Suíça, pois lá existe um delito de ultraje a Estado estrangeiro. Já foi usado a favor do [ex-ditador líbio Muamar] Gaddafi.

O alvo principal, portanto, é a Warner?

Uma ação penal permitiria convocar a Warner e os senhores Affleck e Clooney. Esse tipo de convocação é fácil, acontece diariamente envolvendo pessoas residentes no exterior. A Promotoria só precisa notificar o Ministério das Relações Exteriores. Mas no civil não posso convocá-los.

Qual o objetivo do processo? Obter uma indenização?

O objetivo é parar com esse tipo de produção hollywoodiana, que chegou a uma teatralização inédita no caso de "Argo", já que foi a Casa Branca quem entregou o Oscar, evidenciando o comprometimento político das mais altas esferas do Estado americano para promover o filme.

É algo sério. Com esses filmes faz-se um esforço claro para jogar as opiniões públicas contra o Irã. Isso é propaganda pré-militar. Sei que é difícil lutar contra a maré, mas causar debate público seria um grande avanço. Um processo ajuda a romper com a censura e permite dar visibilidade ao caso.

A senhora tem outro tipo de colaboração com o Irã?

Tenho várias conversas em andamento com o escritório jurídico iraniano em Paris, incluindo acerca das sanções totalmente ilegais contra a República Islâmica do Irã. É um país corajoso, pois desde 1979 o nunca pôde viver tranquilamente.

Como está Carlos [o venezuelano Ilich Ramirez-Sanchez, preso na França por ataques terroristas nos anos 80]?

Ele está bem, mas [a Venezuela] precisa voltar a se impor. Carlos é vítima de um Estado. Ele foi sequestrado pela França [enquanto se escondia no Sudão, em 1994], e isso é um ato internacional ilegal. Se um americano fosse sequestrado no Sudão pelos serviços secretos venezuelanos, levado a Caracas e processado, as autoridades americanas conseguiriam sua libertação no dia seguinte.

Lamento que a republica bolivariana não tenha agido de maneira eficiente para repatriá-lo, o que é um direito dele. Desde a morte do modelo exemplar que era o presidente Hugo Chávez, percebo que as autoridade venezuelanas, alegando dificuldades de governo, se esquecem dos seus compromissos. O próprio presidente Maduro afirmou em recente entrevista ao "Le Monde" que continuaria apoiando Carlos. Aliás, Maduro está cercado por 26 assessores franceses na Presidência. Acho isso bastante estranho.

O que mudou desde Chávez? A Venezuela deixou de apoiar Carlos financeiramente?

Chávez pagava as despesas com advogados. É uma defesa internacional, com advogados da Alemanha, Turquia, Grécia, Itália e Líbano. É preciso pagar suas viagens, hotéis etc. Tudo isso tem um custo.

O que responde aos que a acusam de defender terroristas?

No fundo, são apenas casos políticos que acabaram criminalizados por pressão de Estados. Carlos, por exemplo, tem uma história política. Ele se diz revolucionário profissional, mas ele é comunista e reivindica muitas operações em favor dos palestinos.

Veja o caso da Opep [ataque comandado por Carlos contra a sede da organização dos países exportadores de petróleo, em Viena, 1975, que deixou três mortos]. O problema todo era que a Arábia Saudita [maior exportador mundial de petróleo] mantinha o preço do barril muito baixo por pressão americana. Isso afetava não só os interesses dos demais membros da Opep como também dos palestinos, que dependem da ajuda externa. Os árabes, alegando queda nas receitas de petróleo por causa do preço baixo do barril, haviam parado de enviar dinheiro aos palestinos. A operação permitiu elevar novamente a cotação e levou à retomada da ajuda aos palestinos.

A senhora não se importa com as mortes de inocentes nos atentados?

Claro que lamento as mortes, mas infelizmente se trata de uma guerra, na qual, aliás, há muito menos mortes nas ações revolucionárias do que nas invasões do Iraque, do Afeganistão ou da Líbia. Os Estados não têm direito de exercer atividades terroristas. A França é um Estado terrorista, por ser membro da Otan [aliança militar ocidental], uma organização que participa de atos de terrorismo contra o povo afegão. Na caso da Líbia, eu processei o Estado francês em nome da Aisha Gaddafi, por crime de guerra. A Otan bombardeou a residência particular de Aisha, matando cinco pessoas, entre elas três crianças.

Há vários tipos de guerras. Aquelas que são feitas pelos subversivos, revolucionários políticos e nacionalistas são assimétricas, pois enfrentam Estados com recursos assimétricos. A resistência francesa era tida pelos nazistas como terrorista, os nacionalistas argelinos eram terroristas para a França. Todos colocavam bombas, mas depois assumiram o governo. O terrorista é sempre o inimigo.

A senhora defenderia qualquer pessoa ou organização?

Não defenderia os Estados de Israel ou dos EUA. Os casos que assumo são, na maioria das vezes, contraproducentes e financeiramente catastróficos para o meu escritório. Mas defendo pessoas que são criminalizadas por Estados por defenderam causas políticas.


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