Folha de S. Paulo


Joca Reiners Terron diz que 'desconfiança' foi positiva para novo romance

"A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves" (Companhia das Letras), mais recente romance de Joca Reiners Terron, surgiu enquanto o escritor mato-grossense trabalhava a dramaturgia da peça "Bom Retiro 958 Metros", do Teatro da Vertigem.

"Fiquei três meses improvisando com o grupo, durante cinco horas por dia, e foi uma experiência tão forte que não dava para se resumir somente à peça. Escrevi o romance em um mês", diz o escritor.

Crítica: Obra pós-moderna de Terron tem marcante força realista

Mas os pontos de relação entre uma e outra obra se restrigem a peculiaridades do bairro que lhes serve de cenário, com seus moradores judeus, bolivianos e coreanos.

O romance tem como centro um crime numa área do zoológico dedicada a animais notívagos, que leva o mesmo nome do disco de 2003 de Nick Cave and the Bad Seeds, Nocturama.

Leticia Moreira/Folhapress
O escritor Joca Reiners Terron em seu apartamento, em São Paulo
O escritor Joca Reiners Terron em seu apartamento, em São Paulo

O acontecimento unirá vidas aparentemente tão díspares quanto a de uma enfermeira e seu estranho paciente terminal de hábitos noturnos que nunca sai de casa, um escrivão de polícia mestiço às voltas com a demência senil do pai judeu e um taxista que quer apenas alimentar seus rottweilers.

Terron fala na entrevista abaixo sobre o romance, que tem lançamento nesta terça (14), às 19h, na loja da Companhia das Letras da livraria Cultura, no Conjunto Nacional (av. Paulista, nº 2.076, tel. 0/xx/11/3170-4033), em São Paulo.

Folha - Como foi trabalhar no processo de criação de dramarturgia do Teatro da Vertigem e como isso levou ao livro?
Joca Reiners Terron - O Vertigem trabalha com aquele processo colaborativo, então, obrigatoriamente, a gente ficou três meses experimentando, improvisando cinco horas por dia. Naquele período eu ainda não tinha que escrever nada para a peça, mas acordava cedo para acompanhar. Fui ficando impregnado por aquele clima do bairro e aproveitava as manhãs para escrever o romance. Foi uma experiência tão forte que não dava para se resumir somente à peça. Escrevi o romance em um mês.

Depois dessas experimentações, tive três meses para fazer a dramaturgia, daí coloquei o romance de lado. Ficou quase um ano na gaveta. Quando a peça estreou, quando não precisavam mais de mim, voltei a ele.

Mas o romance, embora tenha nascido no mesmo momento e tenha o mesmo bairro como cenário, não tem relação com a peça, certo?
Os núcleos do romance não vieram de nada que não tenha sido usado. Não é uma sobra, não é um derivativo. Eles surgiram de coisas que aconteceram naquele período.

Uma delas foi uma notícia que li no jornal sobre umas emas que tinham sido encontradas mortas de um jeito brutal em São Paulo e ninguém sabia como elas tinham morrido, porque estavam enjauladas. No período que a polícia levou para descobrir o que tinha acontecido, um ataque de cães, minha imaginação disparou.

Outra coisa foi que, enquanto eu escrevia a peça do vertigem aconteceu a expulsão dos cracômanos da cracolândia. E ainda teve a história de um falso rabino que era considerado o inimigo público número um de Israel e foi preso no Bom Retiro. Ele era meio místico, tinha abusado de crianças e já tinha seguidores. Isso tudo eu abordei lateralmente no livro.

Embora seja um romance pós-modernista, para usar a expressão do Luís Augusto Fischer na crítica sobre seu livro, é também um romance policial, que no geral é um gênero pouco experimental. Como foi unir essas duas pontas?
Acho que hoje tudo é pós-moderno. Um escritor como Ian McEwan usa elementos pós-modernistas e é visto como realista, assim como o Coetzee. São dois representantes do realismo usando elementos criados pelos pós-modernistas dos anos 1970, 1980. A crítica tende a pensar muito no pós-modernismo quando a narrativa é fragmentada.

O livro é realista no sentido de que existe uma tristeza profunda. Ele é o livro sobre a perda de um ente querido. E também o deslocamento no sentido da identidade, pessoas que se sentem deslocada onde estão. Todos os personagens do livro se sentem assim.

E diria que não é um policial ipsis literis, no sentido de que não existe um único culpado. É meio uma constatação de que somos todos culpados. Mas a verdade é que o pós-modernismo tem grande apego pelo policial, como a "Trilogia de Nova York", de Paul Auster, que recuperou elementos do gênero. Isso acabou se disseminando.

Mais de um personagem lida com a culpa que envolve cuidar de alguém debilitado, que é um pouco a discussão de "Amor", o filme do Haneke. Ao mesmo tempo, ao abordar essa questão, você trabalha muito o patético como algo inerente ao trágico. Pode falar sobre isso?
Eu vi "Amor" enquanto escrevia, ou quando estava terminando. E também o iraniano "A Separação" [de Asghar Farhadi], que tem um personagem que cuida do pai que sofre de Alzheimer. O personagem [pai do narrador] lembra muito o meu avô, que passou por coisas parecidas no final da vida.

Acho que esse olhar parte mais de um certo sentido de humor meio torto que tenho, uma tentativa de enxergar humor onde não existe, ou coisas engraçadas que acabam se tornando patéticas. O patetismo está num comportamento dos personagens que estão presos numa roda viva da qual não conseguem sair.

Tem um menino coreano que começa a se aproximar de meninos de classe mais alta, mas, quando é testado, pisa na bola. Parte um pouco dessa ideia de que somos mesmo animais, como dizia [o pensador judeu-americano] Ernest Becker [1924-1974].

Esse foi um livro que você escreveu muito rapidamente e ao qual voltou depois de algum tempo. Foi um método de escrita fora do padrão para você?
Todos os livros são diferentes, cada um exige um método especial, que obviamente se adequa às obrigações cotidianas. Esse foi diferente porque foi estranhamente rápido, e, pelo fato de ter sido tão rápido, me causou enorme desconfiança em relação a ele.

Essa desconfiança foi positiva. O livro pôde descansar o tempo que todo livro merece. Todo original deveria descansar um ano, seis meses. Nos anteriores eu não pude fazer isso. O "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" [coleção Amores Expressos, Companhia das Letras, 2010] entreguei em três meses, e dois meses depois estava indo para a gráfica. Escrever um romance exige tempo, e isso inclui o tempo de descanso dele, de enxergá-lo criticamente, com distância.

Outra coisa é que tendo a escrever de um jeito muito barroco e minucioso e isso às vezes afeta a fluidez da leitura, torna difícil. Esse acabou ficando com um ritmo mais ágil.

Um vez você comentou que achava "Não Há Nada Lá" [Ciência do Acidente, 2000, reeditado em 2011 pela Companhia das Letras] seu melhor livro. Isso mudou?
A gente sempre tende a gostar mais do último. O "Não Há Nada Lá" envelheceu bem, acho que é o melhor, até porque no final dele acontece o Apocalipse e tudo acaba. Mas em geral não gosto de nenhum livro muito tempo depois de escrito.

Não é uma coisa que eu consiga ler sem achar estranho, pensar: 'Porra, quem é que escreveu isso?'. É como olhar uma velha fotografia sua e sentir uma ligeira vegonha por estar de cacharrel e calça boca de sino.


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